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Caso 69 Gaycoins: teria a Apple desejado causar danos psicológicos aos seus clientes?

Caso 69 Gaycoins: teria a Apple desejado causar danos psicológicos aos seus clientes?

Um cidadão russo entrou na justiça com um processo contra a Apple por danos morais, argumentando que um aplicativo do iPhone o tornou homossexual.

Segundo matéria que teve acesso a cópia da denúncia, publicada na revista Exame, no dia 03 de outubro de 2019, o autor da ação pediu uma indenização de cerca de US$ 15 mil por danos morais e psicológicos, depois de ter recebido uma criptomoeda chamada “GayCoin” por meio de um aplicativo do smartphone, no lugar dos bitcoins que havia comprado.

Mas, afinal, é possível isso?

Como entender esse pedido à luz da psicologia e do direito?

Por definição, o dano psíquico pode ser compreendido como uma moléstia ou perturbação de cunho psicopatológico nova na biografia de uma pessoa, que tenha relação a um evento traumático na vida de uma pessoa, estabelecendo assim o nexo causal.

Já o trauma, do ponto de vista psicológico, é resultado de um evento externo que tem o poder de alterar significativamente a qualidade de vida de um individuo, obviamente produzindo uma experiência que gera sofrimento em quem a vivência, sendo interpretada subjetivamente como um evento nefasto e prejudicial.

A matéria relativa a dano de caráter psicológico no âmbito legal possui obviamente relação com o campo da psicologia jurídica, subespecialidade das ciências psicológicas.

Porém, no conceito jurídico, o termo também está relacionado a uma ação culposa de um agente e que trás para a vítima um prejuízo, quer material, moral, estético e que originam em prejuízos vivenciados na esfera psicológica (motivação, cognição, raciocínio, memória, vontade, etc) que, de acordo com Castex, 1997, ocorre de forma súbita ou inesperada , decorrente de uma vivencia ou evento traumático.

Outra questão importante de se avaliar é o grau de intencionalidade do autor do dano, quando se trata de uma ação deliberada, o que também será um fator importante de ser discutido no entendimento do caso, tanto para a defesa quanto para a acusação.

Lembrando que a intencionalidade pertence a um domínio psicológico do sujeito. O trabalho pericial ou de um avaliador independente na área da psicologia jurídica auxilia os operadores do direito de forma ampla.

Neste caso da referida matéria, segundo o advogado, com informações retiradas da notícia, a explicação do fato é devido a seu cliente ter feito o download de um aplicativo de criptomoedas na Apple Store e recebeu uma transferência de “69 GayCoins” com uma mensagem que dizia:

Não julgue antes de testar.

Ainda na argumentação o cliente alega, que:

Decidi testar as relações sexuais. Dois meses depois, iniciei uma relação íntima com uma pessoa de mesmo sexo e agora não consigo voltar atrás. Tenho um namorado estável e não sei como explicar isso a meus pais. Minha vida mudou para pior e nunca mais voltará a ser normal. A Apple me empurrou para a homossexualidade.

Cabe ainda uma questão controvérsia, visto que a homossexualidade não é considerada uma patologia psicológica, porém, a fundamentação do pedido do autor estaria no fato do dano ter sido provocado pela empresa que o induziu e que tal efeito teria apresentado uma alteração em seu padrão comportamental e qualidade de vida.

Lembrando que esse caso aconteceu na Russia, que culturalmente é conhecido como um país austero com questões ligadas à homossexualidade, com ataques constantes a essa população, tendo em 2013 aprovado a lei contra a “propaganda gay”. Então, isso demonstra a influencia de fatores sociais na significação dessa realidade.

Mas, diante de tal questão fica a dúvida, haveria nexo causal entre o ato e o alegado?

Por um lado, o que o autor do processo de dano moral alega que sim nos faz refletir se seria possível uma criptomoeda enviada pelo aplicativo ter induzido uma pessoa a virar homossexual?

Por outro lado, da parte da empresa, haveria intencionalidade na conduta da empresa em causar danos as pessoas?

Conforme mencionado, apenas a avaliação psicológica pericial poderia ser capaz de responder tais questões a justiça e ainda de medir a intensidade do dano, caso houvesse, se prestando ao papel de auxiliar a justiça.

Entretanto, diante de tais quesitos podemos fazer algumas conjecturas, a saber:

  • Homossexualidade não se trata de uma doença ou transtorno psicológico;
  • Uma hipótese a ser levantada também seria sobre as motivações do autor da denúncia, se agiu de má fé, no sentido de se aproveitar da situação e culpabilizar a empresa almejando lucro financeiro;
  • Outra hipótese, sendo refutada a primeira, seria a investigação se tal acontecimento não revela um conflito psicológico do próprio sujeito, que reprime a sua sexualidade e desloca a mesma para o evento, e a empresa como responsável por tendências e desejos que fariam parte de sua própria personalidade.

Sabemos, ainda, que é possível, no direito, a defesa de duas correntes antagônicas, mas que em uma discussão a busca pela doutrina legal e argumentos sensatos podem prevalecer.

Por isso, em questões polemicas ou duvidosas como essa, da qual guardam relação como comportamentos humanos e a lei, justamente o perito psicólogo tem a função de auxiliar a justiça no entendimento e esclarecimento de tais questões, demonstrando a relação da matéria psicológica com demandas legais.

Diante de tal controvérsia e discórdia com a lei, a recomendação é sempre agir com bom senso. Embora vaga a definição, pode ser um começo. Para isso, basta nos colocarmos na pele dos envolvidos e imaginar com bom senso qual tese irá prevalecer.

Advogados, em casos como esse, podem ainda contar com o auxilio de um profissional da mesma área da pericia que será realizada, para fazer o papel de avaliador independente ou assistente técnico. Um profissional capacitado para essa atuação pode mudar o rumo de um processo judicial, então o advogado, diante de demandas psicológicas, pode buscar por esse auxiliar, que muito poderá agregar na formulação de suas teses.

Crimes que gerem danos psicológicos e extrapolem as consequências negativas à vítima também devem ser examinados. O mesmo vale para a prova contraditória, não bastando a simples alegação subjetiva do dano.


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Felipe de Martino Pousada Gomez

Mestre em Enfermagem Psiquiátrica. Professor convidado do Instituto Paulista de Estudos Bioéticos e Jurídicos. Psicólogo forense.

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