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Caso André do Rap: análise técnica, fria e sem populismo

Caso André do Rap: análise técnica, fria e sem populismo

Uma das maiores discussões jurídicas de todo o ano de 2020 foi, sem dúvidas, a soltura de André do Rap, um dos líderes da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC).

O criminoso possui grande influência no meio do crime organizado, fato este corroborado pelas autoridades que o consideravam responsável pelo envio de grandes quantidades de drogas a outros países. Ele estava preso desde setembro de 2019 e já era condenado em 2ª instância por tráfico internacional de drogas. As penas, se somadas, resultam em mais de 25 anos de prisão.

Evidentemente, a sociedade não viu com bons olhos a cena de André do Rap saindo, com aparente tranquilidade, pelo portão da frente do presídio. As forças policias certamente também não, considerando que desempenharam, por anos, um árduo trabalho para efetivar a sua captura. Entretanto, apesar da revolta generalizada, alguns pontos precisam ser esclarecidos. O faccionado encontrava-se preso preventivamente. Por conseguinte, se faz necessário, para compreensão, uma análise desse instituto.

Preliminarmente, a Prisão Preventiva não se confunde com prisão para cumprimento de pena. Enquanto esta é a efetiva responsabilização pelo cometimento de um crime, aquela é decretada para garantir a ordem pública, a ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver descumprimento das medidas cautelares ou, ainda, quando houver dúvidas sobre a identidade civil do acusado. Todas essas hipóteses encontram-se previstas nos arts. 312 e 313, § 1º do Código de Processo Penal.

Art. 312 A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.

Art. 313…

(…)

§ 1º Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.

A diferenciação entre a prisão-pena e a preventiva é estritamente necessária, dado que esta não se presta a punir o culpado. Denota-se, com isso, que uma decretação de prisão preventiva não quer dizer, em nenhuma hipótese, que o detido começou a pagar pelo crime que cometeu. Do mesmo modo, a soltura de alguém em caso igual não significa impunidade.

Feitas essas observações, se chega, posteriormente, a conclusão acerca da imprescindibilidade de garantir que a decretação da prisão preventiva seja realizada quando for, de fato, necessária. Considerando as possibilidades de decretação previstas nos supramencionados artigos do Código de Processo Penal, não subsiste razão em segregar alguém sem que haja o devido risco, ficando vedadas decretações com fundamentos em fatos genéricos ou, então, antigos.

Nesse versar, não havia, anteriormente à Lei 13.964/19 (Pacote Anticrime), nenhuma menção referente ao prazo da preventiva e não raro eram as prisões preventivas que se estendiam por anos. Algumas superavam, inclusive, a própria pena do crime praticado. Com o advento da citada Lei, foi acrescentado um parágrafo único ao artigo 316 do Código de Processo Penal, estabelecendo que decretada a prisão preventiva, o órgão emissor da decisão deverá revisar a necessidade de sua manutenção a cada noventa dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal. In verbis:

Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.

Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.

Infere-se que o legislador determinou, de maneira clara e patente, um prazo para a revisão da prisão cautelar. Assim, no prazo estipulado, quer seja, noventa dias, será necessária que a mesma seja revista. A justificativa é simples e trouxe consigo uma importantíssima ferramenta contra as prisões preventivas demasiadamente extensas. Note, considerando que os motivos da decretação precisam ser atuais e devidamente fundamentados, razoável é a sua revisão a cada noventa dias, avaliando, logo, se é o caso de renová-la ou não.

A consequência da não revisão está presente no próprio dispositivo acrescentado, quando menciona “sob pena de tornar a prisão ilegal”. Dessa forma, ultrapassados os noventa dias sem que tenha havido a revisão, a prisão preventiva é considerada ilegal. Novamente, interpretação clara e que não deixa margem para quaisquer dúvidas.

Aplicando a norma ao caso do André do Rap, constata-se que a prisão do acusado não foi revisada e, então, não podia o Ministro Marco Aurélio tomar outra atitude que não o relaxamento, nos termos do art. 5º, LXV da Constituição Federal, que preceitua que a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…) LXV – a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;

A decisão suscitou repercussão na grande massa, que, além de leiga, jamais entenderia a razão por trás da soltura de um notório líder de facção. No entanto, é possível, após as manifestações populares, analisar o caso de maneira técnica e compreender que não houve, por parte do Ministro, equívoco.

Ainda, para eventuais críticas condenando a decisão e afirmando que a periculosidade do agente deveria ser analisada, se faz indispensável a reflexão acerca da impossibilidade do julgador não aplicar a norma ou aplicá-la de modo distinto. Como já dito, o dispositivo utilizado na fundamentação da soltura não deixa espaço para interpretações.

Além disso, os riscos de possibilitar que o julgador interprete a questão a seu sentir são incalculáveis, tendo em vista a total ausência de segurança jurídica propiciada por tal fato. As legislações federais são elaboradas pelo Congresso Nacional, composto por representantes democraticamente eleitos e mediante amplo debate com a sociedade civil. À vista disso, contrariar o disposto na norma é atentar contra a própria democracia, que, indiretamente, a elaborou.

Isto posto, é perfeitamente possível que hajam discordâncias e reivindicações quanto a sua alteração ou extinção. Porém, o caminho correto para tais ações é através dos mesmos representantes democraticamente eleitos, pois, caso caso contrário, tornar-se-á o Congresso Nacional um local de simples encenação, onde quem decide é, na prática, o judiciário.

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