ArtigosDireito Penal

O caso do bebê que foi baleado na barriga da mãe e morreu após o nascimento

O caso do bebê que foi baleado na barriga da mãe e morreu após o nascimento

Arthur Cosme de Melo é o nome do brasileiro que foi atingido por um tiro ainda no ventre materno na cidade do Rio de Janeiro.

Sua mãe, Claudinéia dos Santos Melo, foi submetida a uma cesariana em que o bebê nasceu com vida, contudo, demandando cuidados especiais pois um projétil atravessou seu tórax, atingindo a coluna, o pulmão e uma das orelhas.

Apesar dos cuidados médicos Arthur Cosme de Melo, em decorrência da violência sofrida, veio á óbito no dia em que completava um mês de vida.

Esse caso se tornou vexata quaestio na turma de Direito Penal III (2017.1) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia a partir da pergunta de um aluno o qual fomentou a discussão em sala. Enfim: qual seria o crime? Eis o objetivo do presente artigo: delinear uma resposta.

Para tanto além de pesquisa bibliográfica, jurisprudencial e consulta á legislação pátria, recorremos a reportagens sobre o tema por meio dos resultados encontrados no sistema de busca “Google” a partir do uso dos seguintes termos: “bebê baleado na barriga da mãe” e “morre bebê baleado rio de janeiro”.

É cediço na jurisprudência e doutrina que o Direito Penal tutela a vida intrauterina e extrauterina. Ao disciplinar os crimes contra a vida o Código Penal traz os seguintes tipo penais: homicídio, participação em suicídio, infanticídio e aborto. Desses, apenas o último possui como objeto jurídico a vida intrauterina.

O marco inicial da vida enseja debates em diversos campos, dentre eles o jurídico, religioso e filosófico. Para o Direito Penal, embora haja disputas de correntes divergentes sobre o tema, prevalece que a vida intrauterina tem início com a nidação.

Prado (2015) ao discorrer sobre a infração de aborto indica que:

O termo inicial para a prática do delito em exame é, portanto, o começo da gravidez. Do ponto de vista biológico, o início da gravidez é marcado pela fecundação. Todavia sob o prisma jurídico, a gestação tem início com a implantação do óvulo fecundado no endométrio, ou seja, com sua fixação no útero materno (nidação). Destarte, o aborto tem como limite mínimo necessário para sua existência a nidação, que ocorre cerca de quatorze dias após a concepção.

A partir dessa premissa que as consequências legais da tutela da vida intrauterina são analisadas. Como exemplo, podemos afirmar que é em decorrência desse entendimento que a chamada “pílula do dia seguinte” e os dispositivos intra-uterino (DIU) podem ser comercializados no Brasil pois não são abortivos do ponto de vista jurídico.

Já a tutela da vida extrauterina tem como marco, para o campo penal, o início do parto. Assim a vida intrauterina, como objeto jurídico do crime de aborto, tem como termo a quo a nidação e o início do parto como termo ad quem. Em suma: a conduta que viola a vida intrauterina será aborto enquanto aquela que ofender a vida extrauterina pode configurar os crimes de: homicídio, participação em suicídio ou infanticídio.

Retomando a vexata quaestio, tem-se no caso concreto que a conduta foi praticada em face da vida intrauterina sendo que a morte se concretizou quando Arthur Cosme de Melo já havia atingido a vida extrauterina. De posse desse dados, questiona-se: qual o tipo penal se amolda ao caso: homicídio ou aborto?

Importante pontuar que mãe e filho foram vítima de bala perdida, ou seja, eles não eram o alvo do disparo. Destarte partimos dessa informação para pontuar que atirar em local público, sobretudo em presença de transeuntes, indica ao menos a assunção do risco de ofender o bem jurídico de terceiros, configurando o dolo eventual.

Para o saudoso mestre e amigo CARVALHO (2003):

No dolo eventual, o agente não quer o resultado, mas assume o risco de produzi-lo. Entre desistir da empreitada e causar a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico, o agente prefere prosseguir na conduta. Seu sentimento é o de egoísmo.

Tribunal de Justiça do Espírito Santos traz julgado sintetizando a tese de que a bala perdida pode configurar dolo eventual, senão vejamos:

É de todo inegável que ao efetuar-se disparos de arma de fogo em direção de outrem, pelo menos se assume o risco de êxito letal. Exceções nas situações raríssimas em que o disparo é feito em direção inequívoca de região que, atingida,  via de regra não coloca em risco a vida da pessoa atingida. Os pés, por exemplo. (...) Hoje em dia morre-se muito por balas perdidas. Projéteis que não terão sido efetuados em direção da pessoa atingida e que a tingem por obra da fatalidade. (negritos do original). (TJ-ES - Apelação APL 09174185420058080000 (TJ-ES). 

O art. 4º do Código Penal, adotando a teoria da atividade, “considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”. Assim, o dolo enquanto elemento subjetivo da infração e indicativo da tipicidade penal deve ser aferido no momento da ação ou omissão.

Nessa perspectiva que o Direito Penal entende quanto ao aborto que:

Se a embora realizada a conduta destinada a interromper a gravidez e a provocar a morte do feto, esta última só se verificar quando já expulso o ser em gestação (extra iterum), tem-se o delito de aborto perfeitamente configurado. Logo, o momento da morte do feto não importa para caracterização do crime de aborto: pode o feto morrer no útero materno - sendo expulso em seguida ou petrificado ou absorvido pelo organismo, sem expulsão - ou ser expulso ainda vivo e morrer em decorrência das manobras abortivas realizadas ou porque o estágio de sua evolução não tenha possibilitado a continuidade dos processos vitais. (PRADO:2015).
Consuma-se o crime de aborto com a morte do feto resultante da interrupção da gravidez; a ocisão do feto pode ocorrer dentro do útero materno ou subseqüente à expulsão prematura. (grifamos) (TJ-SC - Apelação Criminal : APR 878883 SC 1988.087888-3).
Se o feto nasce vivo e viável, segundo Frederico Marques, e vem a perecer, ulteriormente, em consequência das manobras abortivas, o crime de aborto se consuma. (MIRABETE: 2015).

Se a extinção da vida, seja intra ou extrauterina, for decorrente de manobras abortivas – definidas como aquelas praticas objetivando a extinção do feto e ocorridas entre a nidação e o início do parto – o crime será aborto não importando se a morte foi do feto ou do nascido vivo.

Para identificação do dolo enquanto elemento subjetivo do crime não se pode confundir o tempo do crime (ação ou omissão) com o momento da consumação.

O dolo é aferível no momento da conduta, sendo irrelevante para ao enquadramento penal sua alteração após esse lapso salvo nos acasos de desistência voluntária e arrependimento eficaz.

No momento da conduta – pratica da ação ou omissão que constitui ato executório do crime – a tipicidade é delimitada, sendo que a consumação pode ocorrer posteriormente. Nem sempre conduta e consumação ocorrem simultanemamente.

Assim, na infração de aborto é possível a manobra abortiva ser pratica em um momento e a consumação ocorrer em outro. Isso pode acontecer nos crimes materiais e plurisubsistentes os quais são compostos de conduta e resultado, sendo este exigido para a consumação da infração.

Enfim, dogmaticamente nada impede o crime de aborto se configure quando houver nascimento com vida seguida de morte decorrente da ação abortiva, ou seja, situação similar a analisada neste estudo.

Ocorre que embora essa tese tenha amparo jurídico, pelos elementos postos por meio da imprensa, ela não tem aplicação ao caso de Arthur Cosme de Melo. Senão vejamos.

Os noticiários sobre o tema dão conta de que a gestante alvejada estava em um supermercado quando começou uma troca de tiros entre traficantes e policiais na Favela do Lixão no Rio de Janeiro.

Ao que tudo indica os tiros foram disparados com o objetivo de atingir traficantes ou policiais e, não especificamente, a gestante e seu filho. Nesse caso, está presente o erro sobre a pessoa tratado no art. 20, parágrafo terceiro do Código Penal. QUEIROZ (2001:161) delimita esse instituto nos seguintes termos:

Há erro sobre a pessoa quando o agente, em vez de cometer o crime contra a pessoa que desejava, atinge, por erro, pessoa diversa.  

Mais especificamente o caso estudado pode se enquadrar no instituto conhecido como aberratio ictus que é uma espécie de erro sobre a pessoa. Ainda na lição de QUEIROZ (2001:161):

O erro sobre a pessoa pode dar-se por erro de representação (matar um sósia, por engano), como pode resultar de um erro na execução do crime, situação conhecida como aberratio ictus (A, atira contra B, vindo, no entanto, a matar C, que se encontra próximo).

O art. 73 do Código penal trata o instituto da aberratio ictus da seguinte forma:

Quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendendo-se ao disposto no § 3º do art. 20 deste Código. No caso de ser também atingida a pessoa que o agente pretendia ofender, aplica-se a regra do art. 70 deste Código.

Já o art. 20, parágrafo terceiro, do mesmo diploma legal traz a seguinte consequência:

O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime. 

Dada a redação dos dois dispositivos legais citados podemos afirmar que é o dolo do sujeito ativo – em relação à vítima desejada e não à atingida – que determina a tipicidade do crime. Sobre esse tema GRECO (2016:409) lição traz preciosa conforme segue:

Como se dessume da leitura do parágrafo terceiro do art. 20 do Código Penal, é acidental o erro sobre a pessoa porque, na verdade, o agente não erra sobre qualquer elementar, circunstâncias ou outro dado que se agregue à figura típica. O seu erro cinge-se, especificamente, à identidade da vítima, que em nada modifica a classificação do crime por ele cometido.

Na situação em tela, com a aplicação das consequências da aberratio ictus, o crime será homicídio tentado em relação a mãe uma vez que já aventamos a tese do dolo eventual quanto a bala perdida.

Essa seria, prima facie, a classificação penal de uma possível denuncia sendo que a tipicidade levaria em conta as características da vítima visada e não da atingida.

No caso de Arthur Cosme de Melo tendo em vista que o bem atingido fora a vida intratuterina, a consequência seria a mesma? Seria uma situação de aberratio criminis?

A situação se amolda ao concurso formal já que o agente  “mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não” (art. 70 do Código Penal). TELES (2007: 452) ensina que:

a aberratio ictus é persona in persona”, ou seja, “o processo de execução se desvia de uma pessoa para outra de tal modo que, apesar  de possibilitar a acorrência de um crime, em lugar de outro, ambos tiveram como objeto a pessoa humana, ainda que num caso a integridade física, e noutro a própria vida.

Já na aberratio criminis o desvio na execução atinge objeto material e jurídico diversos.

Em vez de atingir uma pessoa, atinge uma coisa material ou, ao contrário, em vez de atacar o objeto, o agente fere ou mata uma pessoa (TELES, 2007: 452). 

As notícias sobre o tema indicam para uma troca de tiros em que mãe e filho passavem pelo local sem fazer parte de qualquer dos grupos que participavam do entrevero. Assim esses elementos indicam que o mais provável foi a ocorrência de erro persona in persona, afantando a incidência da aberratio criminis.

Pois bem, para as duas vítimas será aplicado o instituti da aberratio ictus. Com um só tiro mãe e filhos foram atingidos em seu objeto jurídico: vida. Como Arthur Cosme de Melo foi alvejado ainda na fase da vida intrauterina o crime será de aborto consumado, enquanto que para a gestante registra-se a tentativa de homicídio.

Em que pese o concurso ser formal, diante dos fortes indícios de dolo eventual, será aplicado o cúmulo material pois o art. 70 do Código Penal, parte final, determina que:

(...) As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos. 

Em julgado semelhante a situação posta nesta pesquisa, o STJ decidiu que:

A expressão "desígnios autônomos" refere-se a qualquer forma de dolo, seja ele direto ou eventual. Vale dizer, o dolo eventual também representa o endereçamento da vontade do agente, pois ele, embora vislumbrando a possibilidade de ocorrência de um segundo resultado, não o desejando diretamente, mas admitindo-o, aceita-o. 3. No caso dos autos, os delitos concorrentes - falecimento da mãe e da criança que estava em seu ventre -, oriundos de uma só conduta - facadas na nuca da mãe -, resultaram de desígnios autônomos. Em consequência dessa caracterização, vale dizer, do reconhecimento da independência das intenções do paciente, as penas devem ser aplicadas cumulativamente, conforme a regra do concurso material, exatamente como realizado pelo Tribunal de origem. (STJ - HABEAS CORPUS HC 191490 RJ 2010/0218528-8 (STJ). 

O enquadramento legal, diante do quanto noticiado pelos meios de comunicação, seria de tentativa de homicídio e aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante em sua forma consumada, praticados em concurso formal sendo que a aplicação de pena se daria pelo cúmulo material, ou seja, somando-se as duas penas.


REFERÊNCIAS

CARVALHO, Djalma Eutimio. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial – v. 4. 11. ed. Niterói: Impetus, 2016.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2015.

PRADO, Luis Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

TELES, Ney Moura. Direito Penal. São Paulo: Atlas,2006.

QUEIROZ, Paulo. Direito penal – parte geral. São Paulo: Editora Saraiva, 2001.

Luciana Santos Silva

Doutora pela PUC-SP e Professora de Direito (BA)

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo