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Caso Carrefour: teoria da ação significativa e a confusão sobre a modalidade dolosa

Caso Carrefour: teoria da ação significativa e a confusão sobre a modalidade dolosa

Na noite desta quinta feira (19), João Alberto Silveira Freitas foi brutalmente assassinado por seguranças do mercado da rede Carrefour. João foi espancado até a morte numa cena barbaresca, em um local público, à vista da população que frequentava o local.

Longe de querer compreender o que motivou a ação dos seguranças, este artigo se propõe a analisar friamente o caso em que tudo se deu, com todos os seus contextos e, principalmente, a forma em que o caso foi tipificado, trazendo à luz o erro de tipificação dolosa classificada pela delegada em questão. Os dois seguranças acusados estão presos, respondendo por crime de homicídio doloso, na modalidade eventual.

Para compreendermos onde está o erro, precisamos entender o que é o dolo. O dolo consiste em um ‘‘recurso operacional’’, na medida em que a conduta será classificada como subjetivamente típica quando os aspectos psicológicos e intelectuais que o compõe, correspondem à hipótese típica. Deste modo há certa ‘‘adequação típica’’ subjetiva e anímica entre uma conduta objetivamente implementada pelo sujeito na realidade empírica e o evento típico em questão.

O dolo eventual se manifesta nas circunstâncias da ação praticada pelo sujeito que, não querendo o resultado, assume os riscos de cometê-lo. É a modalidade dolosa onde não se exige o elemento volitivo na conduta do agente, persistindo somente o conhecimento atual sobre o resultado. Este fato é de difícil apreensão, pois uma vez que excluímos a vontade do agente, estamos falando somente em graus de conhecimento do resultado potencial. Ao falar em dolo, estamos falando sobre a possibilidade de acessarmos as instâncias psicológicas do agente que comete o ato ilícito.

Tal fato é uma preocupação para os juristas que se dedicam a promover pesquisas acerca da teoria do delito, havendo uma corrente de juristas que simplesmente retiram do dolo o elemento volitivo, persistindo somente o elemento cognitivo. Um desses nomes é o Wolfgang Frisch. Modo outro, Schmidhauser trabalha com ‘níveis de cognição’ em dada ação ou omissão para assim, posteriormente, trabalhar com o elemento volitivo.

Não que seja possível acessar as instâncias psicológicas do agente – porque não o é -, o direito busca ludibriar este empecilho epistemológico comprobatório a partir do aspecto externo. Tal concepção foi trabalhada na obra do jurista Vives Antón, no que o teórico chamou de ‘teoria da ação significativa’, fundada na teoria da ação comunicativa de Jurgen Habermas, bem como na abordagem analítica da filosofia da linguagem do Ludwig Wittgenstein. Para Antón, as intenções do agente ao realizar determinadas condutas possuem nexo-causal reconhecível socialmente e naturalisticamente.

A teoria da ação do Antón veio como uma espécie de resposta à concepção cartesiana da ação. Segundo essa concepção, a ação era entendida como um fato composto de um aspecto físico (movimento corporal) e de um aspecto mental (vontade). Em razão da contribuição da mente era possível distinguir ontologicamente os fatos humanos dos fatos naturais.

Para o Antón, a ação deve ser entendida de forma específica, não mais como ‘’o que as pessoas fazem’’, mas como o significado do que fazem, isto é, como um sentido da própria ação. Neste sentido as ações não são meros acontecimentos do acaso, mas possuem um significado e um sentido, e, por isso, não basta descrevê-las, é necessário compreendê-las e interpretá-las.

Deste modo, as intenções do agente ao realizar determinadas condutas possuem um nexo-causal reconhecível socialmente e naturalisticamente, de modo que realizar uma conduta X e argumentar intuito Y torna-se impensável.

Quando as pessoas fazem uma prova, é presumível que os objetivos delas sejam acertar o maior número de questões. Não é necessário ler a mente das pessoas para concluir isso, basta analisar alguns aspectos externos, como a frequência com que se assiste às aulas, os seus empenhos e constância, além, é claro, dos resultados que tais condutas tendem a causar (aprovação ou reprovação).

O mesmo ocorre em relação ao Direito Penal, pois determinadas condutas são naturalisticamente presumíveis, de modo que é impossível espancar um homem até a morte e argumentar que a intenção ao realizar o ato ilícito era de ‘dar um susto’ ou ‘repelir uma ameaça’, devido o flagrante nexo de causalidade entre a conduta praticada e o seu resultado.

É displicente dizer que dois indivíduos que espancam até a morte outro sujeito tinham como objetivo apenas o de machucar, que é o objetivo da lesão corporal – animus laedendi -, mas sim extrair dessas diversas lesões a sua morte – o animus necandi.

Não há o que se falar em dolo eventual. O que ocorreu naquele estacionamento foi um assassinato brutal, com intenção e vontade de se produzir o resultado. O dolo foi direto, assassino, inescrupuloso, firmado na necessidade de sangue daqueles indivíduos. No dia da consciência negra, devemos é ter consciência jurídica e tratar cada caso na medida do tratamento que lhe compete. Os seguranças tiveram a intenção de matar o João, todo o contexto aponta para isso. Não podemos ignorar este fato. Houve vontade.


REFERÊNCIAS

Vives Antón – Fundamentos del Sistema penal

Andreas Eisele – teoria do delito

Cezar Roberto Bitencourt – Tratado de Direito Penal, Parte Geral


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