Caso GameStop, IRB e o crime de manipulação do mercado de capitais
Muito se falou nas últimas semanas acerca do Caso GameStop, que acabou sendo replicado pelos investidores brasileiros na empresa IRB. O cerne da questão é se pode ser caracterizado crime o movimento que culminou na manipulação de preços de ativos mobiliários.
Caso GameStop
Para quem não acompanhou os casos acima narrados, agora segue uma introdução: a GameStop é uma empresa varejista de jogos de videogame, sendo a sua atuação, basicamente, no varejo físico de games – assim sendo fácil imaginar que, num mundo assolado por uma pandemia e com compras basicamente virtuais, ela estava em decadência.
Alguns investidores pessoa física – também denominados como “sardinhas” -, reunidos na rede social Reddit, organizaram um movimento de compra das ações da GameStop, chegando o papel a acumular a incrível alta de 1.700% do valor em duas semanas. Este fenômeno é denominado como squeeze, na medida em que a alta se deu de forma totalmente artificial, pois o balanço divulgado pela empresa ao mercado indicava uma possível queda do valor da ação, e não tamanha valorização.
A justificativa para tal movimento, segundo o que se depreende das notícias veiculadas pela mídia, é uma espécie de “vingança” dos pequenos investidores aos fundos de hedge e grandes investidores, que estavam apostando na queda do ativo para lucrar – mais à frente, explicarei melhor o que acontece nesse tipo de operação.
No Brasil, a “bola da vez” foi a ação IRBR3, em que investidores brasileiros tentaram replicar o “efeito GameStop” nos papéis da mencionada companhia, fazendo com que as ações saltassem – artificialmente – 17,82% em um único dia. Tal movimento culminou na emissão de um alerta da Comissão de Valores Mobiliários – CVM – ao mercado, ainda que não especificando exatamente este movimento em si, em que a autarquia ressaltou que estava monitorando os movimentos de mercado e as redes sociais para coibir a prática de squeeze no Brasil, que, segundo o alerta, configura manipulação do mercado de valores mobiliários, estando a pessoa praticante sujeita às sanções administrativas – Instrução CVM 8, inciso II, alínea “c” – e criminais – art. 27-C da Lei 6.385/76. [1]
Então, a grande questão que pretendo responder aqui é: a organização de pequenos investidores para influenciar o preço de um ativo no mercado mobiliário configura o crime disposto no art. 27-C da Lei 6.385/76?
Para que se possa oferecer uma resposta plausível ao questionamento, é imperioso que seja ilustrado, agora, o impacto que o movimento encabeçado pelos investidores “sardinhas” tem no mercado financeiro. Para expor o caso da forma mais didática possível, o ilustrarei como se a operação financeira realizada fosse na modalidade day trade – ou seja, adquiro e vendo determinado ativo no mesmo dia.
Imagine: os fundos de hedge e os grandes investidores percebem, pelos dados e gráficos disponíveis, que a ação XYZ, que custa R$ 10,00, poderá ter uma queda naquele mesmo dia, chegando o seu valor unitário a R$ 9,00. Esses grandes players do mercado dão ordem de venda da ação XYZ a R$ 10,00 a unidade de forma descoberta – quando eles não têm na sua carteira de investimentos o ativo vendido -, contando que poderão adquiri-la para entregá-la aos seus compradores da primeira ordem – de R$ 10,00 – a R$ 9,00, lucrando, assim, R$ 1,00 por XYZ vendida. Esse movimento, que está dentro da lei, é chamado de short selling, ou na linguagem mais popular dos negócios como “operar vendido”.
Agora, analisando este mesmo cenário de projeção de queda com o movimento ocorrido com a GameStop e a IRB, surge o seguinte quadro: aquela mesma ação XYZ, que originalmente estava sendo negociada no mercado a R$ 10,00 e os gráficos indicavam queda, começa a disparar no pregão em razão das diversas ordens de compra efetivadas pelo grupo de “sardinhas”, subindo o valor unitário do ativo a R$ 12,00 – valor artificial, que não condiz com a realidade da empresa.
Este cenário de alta estimula outros investidores, que não sabem do movimento arquitetado pelos “sardinhas”, a também comprarem o ativo. Isso faz com que a ação XYZ se valorize ainda mais, chegando ao valor por unidade de R$ 13,00.
Neste momento, os grandes fundos, que operam um volume gigantesco de ações, estão perdendo R$ 3,00 por XYZ vendida no short selling, na medida em que eles venderam uma ação que não tinham a R$ 10,00 cada e agora precisam adquiri-la para entregar ao comprador – que pagou R$ 10,00 – no valor de R$ 13,00.
A partir do momento em que a ação XYZ, vendida a descoberto pelos fundos, começa a subir vertiginosamente, alguns deles podem passar a atuar em stop loss, efetivando o prejuízo mais cedo, de modo a não ter um dano ainda maior. Assim sendo, os fundos compram a XYZ que venderam a R$ 10,00 pelo valor de R$ 13,00, com medo que a ação chegue aos R$ 15,00.
Ocorre que, pelo volume de ações que os grandes fundos de investimento operam, qualquer posição de stop loss que eles assumam pode fazer com que o ativo XYZ dispare ainda mais o seu valor, colocando os outros fundos e investidores em um prejuízo ainda maior. É um legítimo “efeito bola de neve” que traz prejuízo aos grandes fundos e aos pequenos investidores que, alheios ao real motivo da subida vertiginosa do valor de XYZ, acabam adquirindo ações por valores irreais e que logo terão seu preço reajustado pelo mercado.
Deu para perceber o tamanho do problema?
Em termos legislativos, o art. 27-C, da Lei 6.385/76, assim dispõe:
Art. 27-C. Realizar operações simuladas ou executar outras manobras fraudulentas destinadas a elevar, manter ou baixar a cotação, o preço ou o volume negociado de um valor mobiliário, com o fim de obter vantagem indevida ou lucro, para si ou para outrem, ou causar dano a terceiros:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime.
O bem jurídico tutelado do tipo penal supramencionado é a integridade do mercado de capitais, garantindo o seu funcionamento e a sua credibilidade, caracterizando-se um bem de natureza supraindividual.
Para o caso aqui analisado, a grande questão da tipicidade recai sobre o conceito de dois elementos que são o núcleo do tipo objetivo do crime de manipulação do mercado de capitais: operações simuladas e manobras fraudulentas.
Para que se tenha uma operação simulada, grosso modo, deve-se influir nos preços com uma ação de compra ou venda sem a efetiva vontade e possibilidade de realizar aquela operação. Com essa ação simulada, busca-se induzir terceiros a negociar o ativo alvo por preço distinto daquele praticado no mercado. Não foi o caso das operações em comento, na medida em que os pequenos investidores que fizeram a ação orquestrada estavam realmente consolidando as compras do ativo, cumprindo com todas as operações registradas, não havendo de se falar em simulação.
As manobras fraudulentas, por seu turno, tradicionalmente exigem que as informações implícitas utilizadas como base na compra do ativo fossem falsas, como uma alteração do histórico de cotações da ação alvo, a manipulação da liquidez do ativo, mudança da cotação do preço, a divulgação de fake news de algum fato relevante da empresa, questões estas que causam um risco proibido ao bem jurídico tutelado. No caso ora analisado, também não se tem a utilização de informações implícitas ao ativo falsas, mas sim uma corrente originada em um aplicativo de mensagens que alterou significativamente o valor dos ativos da GameStop e IRB.
Aliás, é de difícil comprovação apontar quem realmente deu início ao movimento e quantos se beneficiaram de forma dolosa do aumento das ações.
Ou seja: na visão deste colunista, ainda que tenha havido uma manobra prejudicial para alguns investidores e fundos, não houve crime.
Todavia, é importante ressaltar que o tipo penal acima apontado é aberto, e já houve quem se posicionou pela possibilidade de criminalização da conduta, na medida em que a expressão “executar outras manobras fraudulentas”, contida no núcleo típico, é aberta. É certo que tal interpretação destoa de certo modo da doutrina vigente, mas será interessante aguardar os próximos capítulos destes casos.
[1] Pra quem quiser conferir o alerta: < https://www.gov.br/cvm/pt-br/assuntos/noticias/cvm-alerta-possivel-atuacao-irregular-de-pessoas-em-midias-sociais-com-vistas-a-influenciar-o-comportamento-de-investidores>
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