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Caso PCPA e a concessão das medidas cautelares por parte da CIDH: a pulsão violenta no ato de indignar-se

Por Mariana Py Muniz Cappellari

Em 30 de dezembro de 2013, após 11 meses do protocolo de Representação encabeçada por diversas entidades,[1] junto a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o referido órgão, considerados os requisitos da gravidade, urgência e irreparabilidade contidos no artigo 25 do seu Regulamento, solicitou ao Governo Brasileiro que: adote as medidas necessárias para salvaguardar a vida e a integridade pessoal dos internos do Presídio Central de Porto Alegre (PCPA); assegure condições de higiene no recinto e proporcione tratamentos médicos adequados para os internos, de acordo com as patologias que estes apresentem; implemente medidas a fim de recuperar o controle de segurança em todas as áreas do PCPA, seguindo os padrões internacionais de direitos humanos e resguardando a vida e a integridade pessoal de todos os internos e, em particular, garantindo que sejam os agentes das forças de segurança do Estado os encarregados das funções de segurança interna e assegurando que não sejam conferidas funções disciplinares, de controle ou de segurança aos internos; implemente um plano de contingência e disponibilize extintores de incêndio e outras ferramentas necessárias; tome ações imediatas para reduzir substancialmente a lotação no interior do PCPA.

 

A referida Representação expõe a olho nu parte das mazelas enfrentadas pelo sistema prisional gaúcho, as quais condizem, evidentemente, com a atualidade brasileira carcerária, embora a extensão e a diversidade dos Estados que compõem a nossa República Federativa. Isso porque a dita peça elenca e descreve, pormenorizadamente, diversas violações de direitos humanos, tais como: o arcaico e constante problema da superlotação carcerária; a perda do controle interno e do domínio do PCPA pelas facções; a precariedade de assistência à saúde; a assistência material sonegada; a inexistência de condições de trabalho, estudos e demais instrumentos de reabilitação; as condições de alimentação, dado o estado precário de higiene de seu preparo e da forma como é servida (o Estado sequer fornece recipiente, prato, talheres para a alimentação); e a revista e as visitas íntimas.

Tal relato tem o condão de trazer à tona apenas uma pequena parte da grotesca realidade vivenciada por inúmeros presos,[2] familiares e agentes de segurança, a qual remonta ao medievo em que permanecemos em tal matéria, sim, porque em 1856 as condições estruturais do Aljube, prisão clerical no Rio de Janeiro, antessala da Casa de Correção, eram as mesmas da atualidade, e a sua superlotação também já agonizava por resolução. Entretanto, o que, aqui, devemos e queremos enfatizar são quais serão os efeitos, se é que existirão, que a concessão das medidas cautelares por parte da CIDH e o acionamento do sistema interamericano de proteção dos direitos operarão no Caso PCPA.

Sem ingressar na seara da eficácia e do cumprimento por parte do Estado das decisões ditadas pela Comissão e pela Corte Interamericanas, tema que notadamente se imbrica com a redefinição do conceito de soberania em uma sociedade dita globalizada e neoliberal, bem como com o nível de democracia que contamos na realidade; é que acreditamos em seu efeito meramente simbólico, embora não se desconheça o poder operado pela chamada sanção moral, além do efeito que o manejo da Representação à OEA possa operar em termos de visibilidade do problema, o que já alcançou, inclusive, não apenas o âmbito interno e local, mas, sobretudo, o internacional.

Entretanto, nos questionamos se a Representação não terá o efeito, também, de apanhar nas pessoas aquilo que Rousseau denominou como característica essencial do ser humano: a virtude da piedade.[3] E nesse ponto estendemos o chamado aos atores e aos operadores do sistema criminal, já que entendemos que não é só ao Estado (executivo) a quem devemos demandar, a fim de buscar a implementação e a efetivação dos direitos mais comezinhos do indivíduo, mas é ao Estado e aos seus atores e operadores que tal medida se impõe. Isso porque Zaffaroni[4] já nos demonstrou há muito tempo atrás a deslegitimidade do seletivo sistema penal (basta se perguntar quem são as pessoas que compõe a grande massa carcerária brasileira), que tem nos seus atores e operadores as engrenagens a pôr o sistema em atividade. Dessa forma, a ótica do desencarceramento como medida de uma política reducionista de danos se principia pelos agentes do sistema.

Afinal, e até, porque parece que a visão do homem empreendida por Rousseau, mormente quando se chama à discussão o presente tema, conflita sobremodo com aquela de Freud[5] (segundo Zaffaroni,[6] a visão freudiana seria um tanto pessimista), a qual tem por questão decisiva para a espécie humana saber se, e em que medida, a sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas à vida em comum pelos instintos humanos de agressão e autodestruição. E nesse ponto, portanto, é que concitamos a todos, para que não nos questionemos tal como Dejours,[7] de como é possível que as pessoas de bem (ótica e palavras do autor), em sua maioria, aceitem, apesar de seu senso moral, ‘colaborar’ com o mal; a sublimar a nossa pulsão violenta no ato de indignar-se com uma realidade tão perversa que esfacela diariamente a pessoa do outro aos nossos olhos, e mesmo assim, não consegue atingir há muitos na sua humanidade. Que a mola propulsora, então, para controlar as perturbações trazidas à vida em comum pelos instintos humanos de agressão e autodestruição, tenha na sublimação do ato de indignar-se a transformação mais que necessária e urgente da nossa realidade, sob pena de nos perdermos no inumano.

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[1]     As entidades que subscreveram à Representação são as seguintes: Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – AJURIS, Associação do Ministério Público do Rio Grande do Sul – AMPRGS, Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul – ADPERGS, Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul – CREMERS, Conselho da Comunidade para Assistência aos Apenados das Casas Prisionais Pertencentes às Jurisdições da Vara de Execuções Criminais e Vara de Execução de Penas e Medidas Alternativas de Porto Alegre, Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia – IBAPE, Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais – ITEC e Themis Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero.

[2]   Em 19 de fevereiro de 2015, a população carcerária do PCPA estava em 3.740 presos, sendo que a sua capacidade de engenharia é de 1.824 vagas, conforme SUSEPE – Superintendência dos Serviços Penitenciários do RGS. Disponível em: <http://www.susepe.rs.gov.br>. Acesso em: 19 fev. 2015.

[3]     GAUER, Ruth Maria Chittó; SAAVEDRA, Giovani Agostini; GAUER, Gabriel J. Chittó. Memória, Punição e Justiça. Uma abordagem interdisciplinar. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

[4]     ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

[5]     FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.

[6]     ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

[7]   DEJOURS, Christophe. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999.  

Mariana

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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