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O caso do cavalo pintado por crianças: maus-tratos?

O caso do cavalo pintado por crianças: maus-tratos?

Semana passada foi notícia – e polêmica – em todo o Brasil o caso do cavalo que foi pintado com tinta guache por crianças na Escola de Equitação da Hípica no Distrito Federal. O caso teve muita repercussão na mídia em geral e nas redes sociais, com pessoas defendendo e outras condenando a atividade, que teria cunho pedagógico.

A polícia irá investigar se o animal sofreu maus-tratos, já que o caso resultou em denúncia na Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (Dema) por Ana Paula Vasconcelos, membro da Comissão de Defesa dos Direitos dos Animais da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Distrito Federal (OAB/DF):

Depois da denúncia, fomos até o local e vimos o quanto o cavalo estava acuado e triste. Conversamos com os responsáveis da escola e disseram que o animal havia sido resgatado porque sofria maus-tratos. Se fosse um animal de sangue puro, com um valor econômico alto, fariam isso? Usaram o animal como objeto.

A Escola de Equitação da Hípica, por sua vez, afirmou que repudia qualquer ato de maus-tratos aos animais, além de dizer que tem experiência na interpretação de sinais emitidos por cavalos e que no caso em questão não houve indício de estresse. Ainda de acordo com a escola, a atividade foi realizada em conjunto com a pedagoga parceira do estabelecimento e aprovada por um médico veterinário.

Haveria muitos pontos para se discutir após o ocorrido, desde éticos, como a objetificação de um animal senciente, até se esse seria um método positivo do ponto de vista pedagógico. Porém, como sempre, vamos nos ater à esfera jurídica criminal.

Afinal, os responsáveis poderão responder por maus-tratos, de acordo com o artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais? Lembrando que o legislador, ao redigir o tipo penal, feriu o princípio da taxatividade ao não ter descrito quais atos se enquadrariam como sendo de abuso e maus-tratos.

De uma perspectiva doutrinária, de acordo com Luiz Regis Prado (2016):

As ações típicas alternativamente previstas são: a) praticar ato de abuso (usar mal ou inconvenientemente – v.g., exigir trabalho excessivo do animal -, extrapolar limites, prevalecer-se); b) maus-tratos (dano, ultraje); c) ferir (ofender, cortar, lesionar); d) mutilar (privar de algum membro ou parte do corpo); e) realizar (pôr em prática, fazer) experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos – elemento normativo do tipo (§ 1º).

Para podermos definir se o ato pode ser enquadrado como maus-tratos devemos ouvir a pessoa habilitada para dar tal diagnóstico: o médico veterinário. De acordo com o site Metrópoles, os agentes dos Conselhos de Medicina Veterinária (regional do DF e federal) não encontraram quaisquer irregularidades ou indícios de maus-tratos durante vistoria das instalações ou nos espaços reservados aos animais. Segundo os Conselhos, tudo estava de acordo com critérios de bem-estar animal estabelecidos.

Já conhecido o parecer dos Conselhos, alguns profissionais com diferentes posições foram convidados por mim a exporem suas opiniões.

De acordo com o médico veterinário Henrique dos Reis Noronha, o evento foi positivo. Segundo o profissional, a atividade aconteceu com a supervisão de médico veterinário especialista em equinos, que conhece o animal utilizado e seu comportamento natural, sendo a equipe da Hípica extremamente qualificada e reconhecida nacionalmente por sua qualidade.

Os cavalos, como outros herbívoros, possuem uma sensibilidade cutânea extremamente desenvolvida. Em especial, os cavalos possuem muito mais mecano-receptores (táteis) que a grande maioria das espécies. Do ponto de vista do comportamento, diversos trabalhos ao longo dos anos ressaltam a importância do “toque”, do grooming ou até mesmo do self-grooming como alguns chamam, afirmando que o toque direto, ou (indireto) através de equipamentos (escovas, esponjas, pincéis) são benéficos à relação homem x cavalo, baseando-se no seu comportamento natural e suas interações, favorecendo uma relação prazerosa e de confiança para ambos. Por outro lado, mesmo com toda inteligência que um cavalo comprova facilmente ter, alguns sentimentos como ‘humilhação’, por exemplo, são sentimentos exclusivamente humanos, por definição.

Já a também médica veterinária Moira Civeira tem uma opinião diferente sobre o assunto. Ela ressalta que todos os animais possuem sua zona de conforto ou de fuga frente a um estranho e que, com o animal acorrentado, seria impossível fugir caso não estivesse se sentindo confortável.

Esta zona muitas vezes é utilizada em manejo, no qual o animal se afasta para seguir em frente, ao destino proposto pelo humano. Segundo ela, as muitas vozes das crianças (ou mesmo gritos), o toque e a pressão ao desenhar podem ser fatores estressantes ao animal, neste caso mais velho, magro e sem reação.

Cada vez mais lutamos para não haver estudos em animais vivos, e esta atividade contraria o quesito de respeito aos animais. Animais não são brinquedos, são seres sencientes que podem reagir frente a um estímulo desagradável e gerar reações que podem colocar as crianças em risco. E conclui afirmando que a interação homem e animal deve ser cada vez mais respeitosa e ética.

Adriana Pessôa, também médica veterinária e ativista pelos direitos dos animais, por sua vez, afirmou que “as pessoas estão começando a acordar para a questão dos direitos animais. Temos o dever de não expor a dignidade dos animais, além de garantir sua integridade, ajudá-los e protegê-los, preservando sua identidade e liberdade. Ainda temos dificuldade de entender que o animal deve existir por si só, livre de nossas amarras e subjugações”.

Para finalizar, ressalto que os principais doutrinadores não se referem a maus-tratos como uma ação que possa infligir danos emocionais aos animais – somente físicos. Já as definições de maus-tratos, de acordo com a Criminologia, são diferentes.

Agnew (1998, p. 179) define como “qualquer ato que contribui para a dor ou morte de um animal ou que ameace o seu bem-estar”, enquanto Ascione (1993) refere-se a maus-tratos como um “comportamento socialmente inaceitável que intencionalmente provoca dor, sofrimento ou angústia desnecessários e/ou morte de um animal”. Portanto, para a Criminologia, não importa o tipo de sofrimento, podendo ser físico ou emocional: ambos são considerados maus-tratos.

Ante o exposto convido você, caro leitor, a dar sua opinião. Afinal, podemos dizer que houve maus-tratos ao equino?


REFERÊNCIAS

AGNEW, Robert. The causes of animal abuse: a social-psychological analysis. Theoretical Criminology, London, v. 2, n. 2, p. 177-209, 1998.

APÓS vistoria, conselhos de veterinária negam que cavalo pintado por crianças sofreu maus-tratos. O Popular [online], 25 jul. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 29 jul. 2018.

ASCIONE, Frank R. Children who are cruel to animals: a review of research and implications for developmental psychopathology. Anthrozoös, [s.l.], v. 6, p. 226-247, 1993.

NASCIMENTO, Jéssica. Ibama notifica hípica após crianças pintarem cavalo com tinta no DF. Folha de S. Paulo [online], 25 jul. 2018. Disponível aquiAcesso em: 30 jul. 2018.

PRADO, Luiz R. Direito penal do ambiente. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

RODRIGUES, Mateus. Hípica divulga vídeo de crianças pintando cavalo no DF e defende atividade; pedagoga questiona adequação. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 29 jul. 2018.


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Gisele Kronhardt Scheffer

Mestre em Direito Animal. Especialista em Farmacologia. Médica Veterinária.

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