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O cheiro do cárcere

O cheiro do cárcere

Lava esfrega o chão com vassoura encharca em água e sabão com água sanitária e desinfetante, embebe a vassoura e o esfregão no balde de água e química forte e joga no chão a esfregar avançando os palmos e metros quadrados, segue o rodo atrás recolhendo a água jogada na água química do chão e o rodo recolhendo empurrando a água toda corrente nos chinelos brancos com tiras azuis já desgastados, o barulho da vassoura esfregando e do rodo empurrando e do retinir da vassoura e do esfregão no balde e a água jogada de cima por outro balde e o empurra-empurra esfrega-esfrega das vassouras e esfregões e rodos no chão limpinho.

O cheiro do chão impregnado de passos lavados a sabão e desinfetante e água sanitária com água e chinelos de dedo. O cheiro da água. O cheiro do que sobrou no ar: sabão e desinfetante e água sanitária misturados a um cheiro de chuva e de monotonia.

As panelas enormes a cozer feijão arroz carne barata óleo e fritura com legumes e verduras, mas perdura o feijão cujo odor esvai das incrivelmente enormes panelas de pressão e deixa o cheiro evidente na cozinha industrial misturado com o suor dos cozinheiros e seus respectivos chinelos de dedo brancos com tiras azuis e toucas nos cabelos, tentativa algo exitosa de higiene mas com inevitável suor que não exatamente cai na comida mas se integra ao cheiro do feijão e da fritura e do vinagre da salada, tudo junto: feijão arroz carne legumes verduras vinagre suor e chinelo de dedo.

A comida é embalada em mil pratos de isopor cuja matriz ou modelo agora extinguiu ou fez extinguir a cozinha industrial e terceirizou o serviço num indiscutível e perigoso monopólio, mas que faz transitar tanto na cozinha interna quanto na cozinha externa, pelos corredores infindáveis, sobre o chão brilhante e limpíssimo recém lavado, os carrinhos de comida que chegam inexoravelmente a cada cômodo.

Cheiro de feijão arroz carne barata legumes verduras frituras suor chinelos misturados com outros chinelos entre sabão e desinfetante e água sanitária.

Grades de ferro pintadas de azul porém descascadas e levemente ou parcialmente enferrujadas e impregnadas de mãos criminosas e inocentes suadas, angustiadas. Grades carregadas de tinta descascada e ferrugem e angústia.

Angústia tem cheiro forte, de enxofre. Enxofre ferro tinta descascada ferrugem recebem feijão arroz carne verdura legume fritura óleo suor chinelo sabão desinfetante e água sanitária.

A cela. As centenas de celas dentre dezenas de galerias e corredores. A cela é o mundo: cama armário cozinha improvisada e banheiro. Oito pessoas em doze metros quadrados de camas armários cozinha e banheiro. Cozinha ladeada ao banheiro em que um lençol velho e roto é a parede, e em um único passo o inteiro sistema digestivo se completa. Louças improvisadas sujas na pia improvisada suja ladeiam latrina buraco no chão impregnada de dejetos diários. Amônia.

Latrina dejetos pia e louça sujas, com roupas velhas e rotas e lençóis suados para sempre. O suor líquido fluido dos corpos no verão ou o suor seco nauseante do inverno misturado à amônia das latrinas e pias meio-sujas meio-limpas.

Um cheiro completamente impregnado por entre todas as galerias, corredores, alas, salas, celas, camas e cafofos, pias, sovacos e lençóis. Cheiro misturado de angústia monotonia enxofre sabão desinfetante água sanitária ferro ferrugem tinta chinelo suor sovaco roupas impregnadas e molhadas ao lado das latrinas dejetos e amônia.

O cheiro do cárcere.

Entra pelas narinas direto na hipófise, para nunca mais sair, náusea perpétua, tenha cheirado o cárcere apenas por um dia, ou pelo resto de uma vida inteira.


Foto: Noel Celis / AFP / Getty Images

André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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