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Cidade Alerta, justiçamento popular e violência mimética

Cidade Alerta, justiçamento popular e violência mimética

Há uns dias me deparei com a notícia de que um homem, Alécio, havia sido morto, após ser apontado pelo famigerado Cidade Alerta como autor do assassinato de uma jovem, Priscila. Isso aconteceu no município de Salto, região metropolitana de Sorocaba, São Paulo.

Justiçamento popular é um tema que me interessa desde a faculdade. No meu TCC, analisei a “chacina de Matupá” à luz da teoria do René Girard (leia AQUI). Depois, somei esforços com um amigo para escrever sobre o linchamento de Guarujá – recomendo a leitura AQUI, para boa compreensão da teoria.

Enfim. Lendo superficialmente os comentários à notícia postada no Facebook, tive a impressão de que essa história destoava do segundo caso mencionado, porque o morto seria de fato culpado pelo crime a ele atribuído – diversamente da Fabiane de Jesus, a dona de casa que, definitivamente, não era uma bruxa, mas foi linchada sob esse pretexto.

Uma leitora da postagem afirmou: “ele confessou”. Outra comentou: “foi ele sim”. Também havia um rapaz parabenizando os populares; outro concluindo que, se a polícia tinha fotografia de Alécio como principal suspeito, é porque havia prova “disso”. Sabemos o repertório de comentários atrelados a casos assim.

Na edição do Cidade Alerta que nos “importa” (quem diria), a repórter Lorena, dialogando com o apresentador Bacci, afirmou que a “informação que chega” é de que a certeza sobre a culpa do suspeito seria de “99,9% (…) certeza que é este homem que você tem a foto em mãos, mas que a gente não pode divulgar”.

Uma tarja ao pé da tela crava o suspense: “Caso Priscila: Duas mulheres mortas ao lado dela. Vítimas de serial killer?” A reportagem vai ao ar e provoca: “Priscila não é a primeira……. e pode não ser a última”. Uma repórter completamente insensível faz perguntas desnecessárias à mãe de Priscila, na frente de quem anuncia que vai “com exclusividade ao local (…) até para ver se encontra outras provas”. A narração afirma que outras duas mulheres foram mortas pelo mesmo sujeito.

Uma fotografia de Alécio com o rosto embaçado é mostrada. A repórter apresenta uma testemunha que teria visto “tudo”, porque presenciou Priscila, na frente de casa, entrando em carro “cinza” dirigido por um homem. Essa moça, que não explica se viu a cena de perto ou de longe e afirma que conhecia a vítima, sequer diz tê-la cumprimentado. Mas ouviu quando Priscila, depois de entrar no carro, falou “vamos”. Teria um ouvido biônico? A janela estava aberta? Estaria ela no banco de trás? Não se sabe.

Mas essa é toda a “prova” que, apresentada na televisão, embasou a decisão dos jurados-executores – por enquanto desconhecidos. Nada foi dito sobre eventuais pistas encontradas no celular que Priscila deixou em casa ao sair – se alguém foi buscá-la, é muito possível que tenha anunciado sua chegada por mensagem.

Além disso, oficialmente, Priscila está desaparecida, não morta, pois o corpo indicado como seu foi carbonizado, e a polícia aguarda o resultado da perícia. Reportagem alguma informa se Alécio possuía uma caminhonete prata – como a de quem teria buscado a jovem –, mas que era catador de material reciclado. O filho narrou à polícia que alguns moradores da comunidade e outros desconhecidos estiveram na residência e chamaram seu genitor para conversar.

À míngua de dados, não é possível dizer muito, mas uma coisa me parece clara: a morte de Alécio ocorreu em contexto de violência mimética, nos moldes da teoria de René Girard. Em largos traçados, o autor cita a presença, nesses casos, de três circunstâncias caracterizadoras, ou “estereótipos persecutórios”: crise indiferenciadora, crime indiferenciado e marca vitimária.

Como são poucas as informações sobre Alécio, não há como estabelecer quais seriam as marcas vitimárias que, preexistentes, levaram à sua polarização – destacando-o do grupo, que o “silenciou” –, mas é possível enxergar nesse episódio, satisfatoriamente, a crise e o crime indiferenciadores.

O Cidade Alerta frisou: “Priscila não foi a primeira…. e pode não ser a última”. Assim, anunciou a crise na segurança de uma cidade que, outrora figurando entre as 30 mais pacíficas do país, de repente se viu assombrada por um suposto serial killer, quem já teria vitimado três mulheres. Os crimes a ele atribuídos e a natureza recidivante da conduta mergulharam a comunidade em único sentimento, assemelhando seus membros na angústia, ou seja, indiferenciando-os, ao mesmo tempo fazendo surgir a ideia de crise à estabilidade do local – se quiser, leia paz social.

Quem seria a próxima? O suspense deixaria a vida claudicante. Se aquele cidadão personificava a ameaça, e era necessário fulminá-la… a conclusão já sabemos, é tudo muito simbólico. Nesse prisma, o assassinato de Alécio não se resumiu a uma vingança, mas à tentativa de restabelecer a serenidade relativa que o programa televisivo abalou, ao anunciar a possível existência de um assassino serial.

Tanto é assim que, nos comentários às postagens sobre o fato, muitos frisam ele ter confessado o crime; outros ponderam: se mataram a pessoa errada, temos um assassino à solta. Como se não tivessem assassinado o suspeito… A mim parece haver mais de um assassino à solta, pelo menos enquanto o significado da palavra não mudar.

A confissão convenientemente neutraliza a culpa dos perseguidores e permite que se mantenham convictos de terem feito a coisa certa[1]. Aliás, qual o rigor para que se considere estar diante de uma confissão, quando é dito que uma testemunha viu “tudo”, apenas porque presenciou a jovem desaparecida ingressando em um carro, dois dias antes do encontro de um cadáver? Teria o suspeito confirmado que a conhecia, e isso bastado para que entendessem estar confessando? Quem duvida?

O suspeito foi morto no mesmo dia em que sua fotografia foi mostrada no Cidade Alerta. Choveram questionamentos a Bacci – a Polícia Civil de São Paulo instaurou inquérito para verificar se os jornalistas cometeram um crime –, que acentuou a produção de estereótipos. Afirmou: “Não se descarta, nesse momento, inclusive a possível participação do Tribunal do Tráfico”, e “pelas características, sete tiros disparados contra esse homem, há uma grande possibilidade, de acordo com a investigação, de se ter o PCC”.

É o estilo dele, afinal de contas, no programa que antecedeu a morte de Alécio, o apresentador chegou ao ponto de assumir ter um pé atrás quanto a se tratar de um maníaco sexual, psicopata, porque “… um crime por ano, morta por tiros, pode ser um ritual satânico”. Bela conclusão!

A Record divulgou nota dizendo, entre outras coisas, que “o mesmo suspeito é apontado como envolvido em outros crimes”. A polícia, contudo, segundo a Folha de São Paulo, afirmou que Alécio não era suspeito de crime algum.

Assim nós vamos (não sei para onde).


NOTAS

[1] Para mais sobre o tema: FRANCK JR, Wilson; BARBOSA, Milton Gustavo Vasconcelos. A confissão do acusado e o fechamento do ciclo de violência mimética: para além do platonismo cultural das instituições jurídicas. In: 3º Congresso Internacional de Ciências Criminais da PUC-RS, 2012, Porto Alegre. Anais… Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2012.


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