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Cisão processual e processo penal

Cisão processual e processo penal

Embora a hipótese da cisão do processo esteja prevista no Código de Processo Penal, especialmente nos casos elencados no art. 80 do CPP, a providência, a depender do caso concreto, poderá violar o disposto no art. 5º, LV, da CF/1988, in verbis:

aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Para entendermos o raciocínio, imaginemos a seguinte situação:

Digamos que JOÃO esteja sendo processado juntamente com PAULO em uma ação penal pela prática de um determinado crime.

Por algum motivo, o juiz decide separar os processos. Isso pode ocorrer, por exemplo, quando o número de acusados é excessivo, quando um dos réus está foragido etc.

Com a medida, garante-se o cumprimento do disposto no art. 5º, LXXVIII, da CF/1988:

a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

Cisão processual

De outra parte, a cisão processual, no caso acima, impede que o defensor de JOÃO participe da instrução da ação penal envolvendo PAULO, especialmente do interrogatório, e vice-versa, uma vez que, agora, existem processos distintos para cada um deles.

Em outras palavras, o defensor de JOÃO, ao não participar da instrução do réu PAULO, não poderá fazer questionamentos e esclarecer os fatos.

Ao contrário, o Promotor de Justiça, representante do Ministério Público, irá atuar em ambos os processos. 

Isso fará com que deixe de existir a “paridade de armas” entre a acusação e a defesa, porque o Parquet, ao contrário do defensor, como dito, irá participar de todos os atos do processo, o que configura nítida vantagem.

Ainda que exista discussão acerca do assunto, é importante pontuar que a jurisprudência da Corte da Cidadania autoriza que o corréu e seu defensor participem do interrogatório de outro acusado, independentemente de se tratar de processo único ou de processo objeto de cisão.

A questão possui relevância porque, em algumas situações, a tese de defesa de um dos réus pode imputar a responsabilidade aos demais acusados, ou prejudicar a tese defensiva destes.

Nesse sentido:

PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. 1. IMPETRAÇÃO SUBSTITUTIVA DO RECURSO  PRÓPRIO. NÃO CABIMENTO. 2. “OPERAÇÃO CAIXA DE PANDORA”. PREVENÇÃO DESTE RELATOR. ART. 71, § 6º, RISTJ. 3. IMPETRAÇÃO CONTRA INDEFERIMENTO  DA LIMINAR. SUPERVENIÊNCIA DO MÉRITO. ADITAMENTO DA IMPETRAÇÃO. 4. INTERROGATÓRIO DOS CORRÉUS. PARTICIPAÇÃO DA DEFESA. DEFERIMENTO DO PEDIDO.  POSTERIOR RECONSIDERAÇÃO. PRECLUSÃO PRO JUDICATO. NÃO VERIFICAÇÃO. 5. AÇÕES PENAIS EM TRÂMITE NO MESMO JUÍZO. EXISTÊNCIA DE CONEXÃO. DIVISÃO EM 17 DENÚNCIAS. CONVENIÊNCIA DO  ÓRGÃO ACUSADOR. NÃO INCIDÊNCIA DO ART. 80 DO CPP. ENTENDIMENTO ASSENTADO NO RHC 66.137/DF. 6. PARTICIPAÇÃO NO INTERROGATÓRIO DOS CORRÉUS. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO  E DA AMPLA DEFESA. 7. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. […] 4. Não há se falar em preclusão pro judicato, porquanto, embora não tenha  havido irresignação do Ministério Público com relação ao deferimento  de participação do paciente nos demais interrogatórios, tem-se que o Magistrado não está impedido de atuar de ofício, com o objetivo de dar o adequado andamento à Ação Penal. 5. Embora  tenha havido o desmembramento das ações penais, todas se encontram  tramitando perante a 7ª Vara Criminal de Brasília, em virtude da  conexão existente, a denotar o entrelaçamento dos fatos apurados. A cisão ocorreu não em virtude de foro por prerrogativa de função  nem em razão da aplicação do art. 80 do Código de Processo Penal, mas sim por conveniência do órgão acusador, que considerou ser  melhor, para a adequada elucidação dos fatos, a divisão das imputações em diversas denúncias. Conforme consignado no Recurso em Habeas  Corpus n. 66.137/DF, a divisão da acusação em 17 ações penais, todas em trâmite perante a 7ª Vara Criminal de Brasília, não se confunde com a separação dos processos facultada pelo art. 80 do Código de Processo Penal. 6. A jurisprudência  pátria se firmou no  sentido de que “o interrogatório  é meio de defesa que autoriza, no curso de sua realização,  a intervenção dos defensores, mesmo os de corréus: “O interrogatório   judicial, notadamente após o advento da Lei 10.792/2003, qualifica-se  como ato de defesa do réu. ‘A relevância de se qualificar o interrogatório judicial como um expressivo meio de defesa do acusado conduz ao reconhecimento de que a possibilidade de  o réu co-participar, ativamente, do interrogatório judicial dos demais litisconsortes penais passivos traduz projeção concretizadora da própria garantia constitucional da plenitude da defesa, cuja integridade há de ser preservada por juízes e Tribunais, sob pena de arbitrária  denegação, pelo Poder Judiciário, dessa importantíssima franquia constitucional’ (HC. 94.016/SP, Rel. Min. Celso de Mello). (…). Inviabilizar a participação dos defensores dos corréus no interrogatório do outro réu caracteriza ofensa aos postulados do devido processo penal.” (HC  172.390/GO, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 16/12/2010, DJe 01/02/2011). 7. Habeas  corpus não  conhecido. Ordem concedida de ofício, para restabelecer  a decisão que autorizou a participação da defesa do paciente  no interrogatório dos corréus, confirmando, assim, a liminar deferida (STJ. HC 480154, julgado em 21/2/2019. Relator: Reynaldo Soares da Fonseca).

Sobre a possibilidade de litisconsortes penais passivos formularem reperguntas aos corréus, colhe-se da jurisprudência da Corte Suprema:

HABEAS CORPUS” – NECESSIDADE DE RESPEITO, PELO PODER PÚBLICO, ÀS PRERROGATIVAS JURÍDICAS QUE COMPÕEM O PRÓPRIO ESTATUTO CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE DEFESA – A GARANTIA CONSTITUCIONAL DO “DUE PROCESS OF LAW” COMO EXPRESSIVA LIMITAÇÃO À ATIVIDADE PERSECUTÓRIA DO ESTADO (INVESTIGAÇÃO PENAL E PROCESSO PENAL) – O CONTEÚDO MATERIAL DA CLÁUSULA DE GARANTIA DO “DUE PROCESS” – INTERROGATÓRIO JUDICIAL – NATUREZA JURÍDICA – MEIO DE DEFESA DO ACUSADO – POSSIBILIDADE DE QUALQUER DOS LITISCONSORTES PENAIS PASSIVOS FORMULAR REPERGUNTAS AOS DEMAIS CORRÉUS, NOTADAMENTE SE AS DEFESAS DE TAIS ACUSADOS SE MOSTRAREM COLIDENTES – PRERROGATIVA JURÍDICA CUJA LEGITIMAÇÃO DECORRE DO POSTULADO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA – PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (PLENO) – MAGISTÉRIO DA DOUTRINA – PEDIDO DEFERIDO. A ESSENCIALIDADE DO POSTULADO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, QUE SE QUALIFICA COMO REQUISITO LEGITIMADOR DA PRÓPRIA “PERSECUTIO CRIMINIS”. – O exame da cláusula referente ao “due process of law” permite nela identificar alguns elementos essenciais à sua configuração como expressiva garantia de ordem constitucional, destacando-se, dentre eles, por sua inquestionável importância, as seguintes prerrogativas: (a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário); (b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; (c) direito a um julgamento público e célere, sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis “ex post facto”; (f) direito à igualdade entre as partes; (g) direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas de ilicitude; (h) direito ao benefício da gratuidade; (i) direito à observância do princípio do juiz natural; (j) direito ao silêncio (privilégio contra a auto-incriminação); (l) direito à prova; e (m) direito de presença e de “participação ativa” nos atos de interrogatório judicial dos demais litisconsortes penais passivos, quando existentes. – O direito do réu à observância, pelo Estado, da garantia pertinente ao “due process of law”, além de traduzir expressão concreta do direito de defesa, também encontra suporte legitimador em convenções internacionais que proclamam a essencialidade dessa franquia processual, que compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado em sede de persecução criminal, mesmo que se trate de réu estrangeiro, sem domicílio em território brasileiro, aqui processado por suposta prática de delitos a ele atribuídos. O INTERROGATÓRIO JUDICIAL COMO MEIO DE DEFESA DO RÉU. – Em sede de persecução penal, o interrogatório judicial – notadamente após o advento da Lei nº 10.792/2003 – qualifica-se como ato de defesa do réu, que, além de não ser obrigado a responder a qualquer indagação feita pelo magistrado processante, também não pode sofrer qualquer restrição em sua esfera jurídica em virtude do exercício, sempre legítimo, dessa especial prerrogativa. Doutrina. Precedentes. POSSIBILIDADE JURÍDICA DE UM DOS LITISCONSORTES PENAIS PASSIVOS, INVOCANDO A GARANTIA DO “DUE PROCESS OF LAW”, VER ASSEGURADO O SEU DIREITO DE FORMULAR REPERGUNTAS AOS CORRÉUS, QUANDO DO RESPECTIVO INTERROGATÓRIO JUDICIAL. – Assiste, a cada um dos litisconsortes penais passivos, o direito – fundado em cláusulas constitucionais (CF, art. 5º, incisos LIV e LV) – de formular reperguntas aos demais corréus, que, no entanto, não estão obrigados a respondê-las, em face da prerrogativa contra a auto-incriminação, de que também são titulares. O desrespeito a essa franquia individual do réu, resultante da arbitrária recusa em lhe permitir a formulação de reperguntas, qualifica-se como causa geradora de nulidade processual absoluta, por implicar grave transgressão ao estatuto constitucional do direito de defesa. Doutrina. Precedente do STF (STF. Habeas corpus n. 94.601, julgado em 4/8/2009. Relator: Min. Celso de Mello).

Ainda que, no futuro, o juízo autorize o compartilhamento da prova ao final de toda a instrução, antes das alegações finais, isso no caso de processos cindidos, o exercício pleno da ampla defesa e do contraditório ficarão prejudicados, porque a prova terá sido produzida sem a participação da defesa do outro réu.

O caminho, assim, é pugnar pela revogação da decisão que determinou a cisão dos autos.

Alternativamente, a defesa pode requerer que o juiz autorize a participação do corréu e do defensor na instrução da ação penal do outro acusado, ou, ao menos, do interrogatório deste, a fim de que o advogado possa fazer reperguntas e esclarecer os fatos (art. 188 do CPP), tudo como forma de garantir o cumprimento do princípio do devido processo legal, conforme prescreve o art. 5º, LIV, da CF/1988.


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