ArtigosPolítica Criminal

Civilização e proibicionismo em lados opostos

Civilização e proibicionismo em lados opostos 

“As plantações de papoula-dormideira no sul da Espanha e da Grécia, no noroeste da África, no Egito e na Mesopotâmia, são provavelmente as mais antigas do planeta. Isso explica que seu ópio tenha duas e até três vezes mais morfina que o do Extremo Oriente. A primeira referência escrita a essa planta aparece em placas sumérias do terceiro milênio a.C., por meio de uma palavra que significa também ‘gozar’. Aparecem também cabeças de dormideira nos cilindros babilônicos mais antigos, bem como em imagens da cultura cretense-micênica. Há hieróglifos egípcios que já mencionam o suco extraído desta cabeça – o ópio – e recomendam-no como analgésico e calmante, tanto em pomadas como por via retal e oral. Um dos seus empregos reconhecidos, segundo o papiro de Ebers, é ‘evitar que os bebês gritem alto’. O ópio egípcio ou ‘tebaico’ simboliza a máxima qualidade em toda a bacia mediterrânica, e já surge menionado em Homero – na Odisseia – como coisa que faz esquecer qualquer sofrer” (ESCOHOTADO, 2004, p. 15).

Em História Elementar das Drogas, o espanhol Antonio Escohotado, um dos mais importantes investigadores do papel das drogas na história da humanidade, nos fornece um relevante panorama de como o uso de substâncias entorpecentes – em suas mais variadas possibilidades e para as mais diversas finalidades – constitui um fenômeno cultural presente em praticamente todas as civilizações humanas, cujos primeiros registros históricos remontam à Idade do Bronze. Aliás, como o próprio Escohotado (2004, p. 15) anota, é possível atestar o consumo de drogas em períodos pré-históricos:

“As culturas de caçadores-colectores – sem dúvida as mais antigas do planeta – têm em comum uma pluralidade aberta ou mesmo interminável de deuses. Actualmente sabemos que numa proporção muito elevada dessas sociedades os sujeitos aprendem e reafirmam a sua identidade cultural passando por experiências com alguma droga psicoativa” .

Seja como elementos fundamentais de práticas religiosas[1], em aplicações medicinais[2] ou mero uso recreativo, ao analisarmos o rumo da história, percebemos a convivência existencial e harmônica entre o ser humano e as drogas.

Assim como o desenvolvimento tecnológico, as manifestações artísticas, a escrita e a religiosidade, o uso de substâncias entorpecentes constitui elemento fundamental das infinitas culturas humanas que já ocuparam o globo terrestre, de modo que não há qualquer exagero (ou artifício de retórica) ao afirmar que as drogas – assim como as artes, a tecnologia e a religião – repercutem de modo decisivo na configuração das sociedades ao longo da História.

A representação das drogas como a principal tragédia da humanidade é um fenômeno que se inicia somente na década de sessenta do século XX. Conforme elucida Rosa Del Olmo (1990, p. 29), “na década de cinquenta, a droga não era vista como ‘problema’ porque não tinha a mesma importância econômico-política da atualidade, nem seu consumo havia atingido proporções tão elevadas”.

É a partir da década de sessenta, com o surgimento do discurso médico-jurídico, que a relação existencial entre o homem e as drogas recebe seus primeiros golpes.

Ainda que discursos proibicionistas e puritanos tenham surgido em alguns períodos históricos (mirando em uma ou outra substância entorpecente), é a partir da década de sessenta que a mentalidade proibicionista – arraigada em discursos moralistas que criam a relação maniqueísta na qual a droga é demonizada – se espalha pelo mundo.

Sob o ponto de vista histórico, o discurso de guerra às drogas ganha nítida conotação de absoluta irracionalidade. Uma irracionalidade que – por diversas razões de ordem econômica e social – serve para legitimar o extermínio da juventude negra brasileira, que alimenta a institucionalização de ações violentas em guetos urbanos.

Da perspectiva da história, pretender acabar com as drogas, tal como propõem aqueles que comandam a mais insana das guerras, assemelha-se à pretensão de acabar com as artes, acabar com a tecnologia, acabar com a medicina, enfim acabar como a própria civilização.


REFERÊNCIAS

ESCOHOTADO, Antonio. História elementar das drogas. Lisboa: Antígona, 2004.

DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990.


NOTAS

[1] Com a raríssima exceção do islamismo, ao longo da história, diversas práticas religiosas ritualizam o consumo de alguma substância entorpecente. No catolicismo, por exemplo, o sangue de Cristo é celebrado sob a forma de bebida alcoólica. Na tradição rastafári, a cannabis é considerada uma erva sagrada, utilizada em rituais de purificação. Diversos cultos religiosos surgidos na Amazônia apresentam o consumo ayahuasca como elemento central de seus rituais espirituais.

[2] No ocidente, o desenvolvimento da medicina é tributário do uso terapêutico de diversas substâncias que atualmente são criminalizadas. Escohotado anota que o emprego médico do ópio remonta aos templos de Esculápio (na Grécia Antiga), instituições assemelhadas aos nossos hospitais, “onde à chegada os pacientes eram submetidos a uma incubatio ou ‘sonho curador’. Além disso, o tratado hipocrático sobre histeria já recomendava o uso do ópio como tratamento.

Stéfano Avellar

Especialista em Direito Processual. Pesquisador. Advogado.

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo