Clara dos Anjos: uma discussão do papel da mulher na sociedade
Clara dos Anjos: uma discussão do papel da mulher na sociedade
Afonso Henriques de Lima Barreto, nascido em 13 de maio de 1881 e falecido em 1º de novembro de 1922, foi um dos grandes escritores brasileiros, com sua obra marcada pela crítica ao racismo e à miséria em que vivia, e ainda vive, grande parte da população do país.
Sua obra derradeira, Clara dos Anjos, publicada após sua morte precoce, é vista como uma grande denúncia do racismo, que no caso da obra, é ainda mais cruel com as mulheres. Narrando a triste vida da jovem “mulata” (no tempo em que a obra foi escrita, esse termo não era visto como pejorativo ou inadequado) seduzida e abandonada grávida por um homem branco da alta classe, em um tempo em que a desonra ficava toda para a mulher, Lima Barreto foi além da crítica ao racismo, marca forte de sua obra, e fez uma profunda discussão do papel das mulheres na sociedade patriarcal brasileira. No tempo em que a obra se passa, inícios do século XX, mulheres ricas ou pobres só tinham duas escolhas: o casamento ou a “desonra”.
Nesse cenário de pouquíssimas opções, a personagem Clara dos Anjos parece fadada a um triste destino. Jovem de dezessete, quase dezoito anos, pobre, moradora da nascente periferia do Rio de Janeiro, com uma educação restrita a prendas domésticas, filha de pais com pouco estudo, Clara é mostrada como uma jovem profundamente ingênua.
Através de suas personagens, Barreto defende um novo papel para a mulher, que lhe sejam dadas oportunidades de estudo e trabalho, estando o autor muito à frente da sociedade patriarcal de seu tempo cronológico:
Quem conhecesse intimamente Engrácia, havia de ficar espantado com a atitude decisiva que tomou em relação à visita de Cassi. O seu temperamento era completamente inerte, passivo. Muito boa, muito honesta, ativa no desempenho dos trabalhos domésticos; entretanto, era incapaz de tomar uma iniciativa em qualquer emergência. Entregava tudo ao marido, que, a bem dizer, era quem dirigia a casa. (BARRETO, 1948, pg. 52).
Engrácia recebeu boa instrução, para a sua condição e sexo; mas, logo que se casou – como em geral acontece com as nossas moças – tratou de esquecer o que tinha estudado. O seu consórcio com Joaquim, ela o efetuara na idade de dezoito anos. (Idem, pg. 53).
A jovem Clara era filha do carteiro Joaquim dos Anjos e de Engrácia, mulher negra, descendente de escravos. Joaquim é mostrado como um homem trabalhador, honrado, mas de poucas letras, com pouca ambição. Engrácia, sua mulher, só vivia para as prendas domésticas, com poucas amigas e pouca vida social. Essa reclusão, falta de bons amigos, acaba contaminando a educação que ela passa à sua filha, o que no contexto da história resulta na ingenuidade excessiva da protagonista.
Barreto critica a educação recebida por Clara, e outras jovens de seu tempo e cor:
Engrácia, cujos cuidados maternos eram louváveis e meritórios, era incapaz do que é verdadeiramente educação. (Idem, pg. 54).
Por isso, não levou avante os estudos musicais da filha, os quais, por falta de convivência e tempo, não passaram da pouca coisa que ele podia ensinar. Mesmo ela não tinha nenhum ardor musical, nem de repetir, nem de reproduzir, nem de criar; aprazia-lhe ouvir, e era o bastante para a sua natureza elementar. Nem a relativa independência que o ensino da música e piano lhe poderia fornecer, animava-a a aperfeiçoar os seus estudos. O seu ideal na vida não era adquirir uma personalidade, não era ser ela, mesmo ao lado do pai ou do marido. Era constituir função do pai, enquanto solteira, e do marido, quando casada. (Idem, pg. 89).
Nesse universo de meninas criadas exclusivamente para serem donas-de-casa, destacava-se Dona Margarida Pestana, mulher estrangeira que se estabelecera no Brasil, viúva, que trabalhava a fim de garantir seu sustento e de seu filho.
Cassi, o homem que tinha por hábito “seduzir” e abandonar a jovem em seguida, muitas vezes grávida, é mostrado como um jovem de classe alta, que vivia às custas do pai rico e honrado. Um medíocre, mas com posição na sociedade, em virtude de sua família.
Em um tempo em que havia o crime de sedução, Cassi sempre escapava de responder por seus atos. Às jovens, ficava a desonra e um filho sem pai:
Todas essas proezas eram quase sempre seguidas de escândalo, nos jornais, nas delegacias, nas pretorias; mas ele, (…), injuriando as suas vítimas, (…) conseguia livrar-se do casamento forçado ou de alguns anos na correção. (Idem, pg. 23).
Através de amigos em comum, que circulavam pelos subúrbios do Rio de Janeiro, Cassi é convidado para o aniversário de dezoito anos de Clara. Ao acaso, escolhe a menina como seu novo alvo.
Marramaque, padrinho de Clara, é um dos poucos que percebe os riscos de apresentar uma garota ingênua como Clara para um tipo afeito a escândalos como Cassi. Joaquim dos Anjos ignora os conselhos do amigo e o convida a sua casa. Para aquela gente simples, sem estudo, sem o hábito de ler jornais, Cassi é “filho de doutor”, e, portanto, alguém honrado e respeitável.
Marramaque continua a sua oposição a essa nova amizade. Cassi mata o velho. Mais um crime no subúrbio, a polícia pouco se importa em investigar. Com nenhuma oposição, ganha a confiança de Clara, que mantem tudo em segredo de seus ingênuos pais. Após alguns encontros, desaparece, deixando a moça grávida e desesperada. Quando Clara resolve pedir dinheiro a Margarida, a fim de realizar um aborto em segredo, a alemã não demora a descobrir a triste verdade:
Gostava muito da família do carteiro; mas, no seu íntimo, julgava-os dóceis demais, como que passivos, mal armados para a luta entre os maus e contra as insídias da vida.
Quando Clara lhe falou no empréstimo ou adiantamento, ela se espantou. Nunca a filha do ‘correio’ lhe havia feito semelhante pedido – o que queria dizer aquilo?. (idem, pg. 128/129).
Ao descobrir, com sua sagacidade habitual, a verdade, Margarida então toma o papel que caberia, em tese, aos pais de Clara, e leva a moça para a casa dos pais de Cassi. Mas Clara é humilhada:
(…) A mãe de Cassi, depois de ouvi-la, pensou um pouco e disse com um ar um tanto irônico:
– Que é que a senhora quer que eu faça?
(…) A moça foi notando isso e se encheu de raiva, de rancor por aquela humilhação por que passava, além de tudo que sofria e havia ainda de sofrer.
Ao ouvir a pergunta de Dona Salustiana, não se pôde conter e respondeu como fora de si:
– Que se case comigo.
Dona Salustiana ficou lívida (…).
– Que é que você diz, sua negra?. (Idem, pg. 131).
Abandonada e humilhada, Clara por fim entende sua situação na sociedade racista e machista em que vivia, de mulher negra, jovem e grávida de uma relação fora do casamento:
– Mamãe! Mamãe!
– Que é minha filha?
– Nós não somos nada nesta vida. (Idem, pg. 133).
REFERÊNCIAS
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. São Paulo: Editora Ática, 1995.
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