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A coculpabilidade às avessas

A coculpabilidade às avessas

Em oportunidade anterior, discorremos acerca das nuances da coculpabilidade, sendo esta entendida como a repartição de responsabilidades, de forma a atribuir de forma justa a carga de culpa derivada do cometimento do delito por um agente marginalizado.

Em verdade, o que se pretende com a coculpabilidade é a assunção da “mea-culpa” por parte do Estado, uma vez que esse, originariamente, é falho em sua função precípua de garantidor e protetor, ausente no processo geracional dos direitos e garantias fundamentais de grande parcela dos indivíduos.  

Neste sentido, não é medida de justiça o indivíduo arcar sozinho com toda a parcela da reprovação da conduta delituosa, uma vez que o abandono e omissão estatal constituem fatores determinantes sobre o agir do delinquente, totalmente marginalizado e alheio à situação social.

Portanto, nada mais justo que a reprovabilidade da conduta a ser observada quando do cometimento do delito por esse indivíduo vulnerável socialmente ser em menor escala, exatamente por ter sofrido todo esse processo de marginalização.  

Dito isso, tem se verificado atualmente e em larga escala a existência da coculpabilidade às avessas, sendo esta verificada, nas lições de Moura (2016), quando o Estado, detentor do direito de realizar a persecução penal e punir, tipifica condutas que são direcionadas aos marginais e miseráveis ou, ainda, quando se aplica penas mais abrandadas ou, inclusive, quando se extingue a punibilidade de agentes detentores de grande poderio político e econômico em razão do cometimento de determinados crimes.

Ou seja, é concedido aos agentes detentores de um vasto capital econômico um abrandamento ou até mesmo a extinção da sua punibilidade em virtude da simples reparação dos danos derivados do cometimento de delitos. 

A crítica que circunda toda a questão da coculpabilidade às avessas é que a reprovabilidade da conduta praticada por agentes que tiveram amplo acesso a direitos e garantias individuais em geral, deveria ser muito mais acentuada. A uma, exatamente pela posição que assumem dentro do grupo social.

A duas, pelo seu grau de instrução e pelo fato de que sempre foram socialmente inseridos na sociedade e, a três, porque certamente não tiveram o seu âmbito de autodeterminação afetado por questões ligadas à vulnerabilidade e marginalização em decorrência da omissão do Estado e da sociedade, como ocorre com determinados indivíduos. 

Corroborando com o aventado acima:  

 […] 4. Não tendo havido o pagamento, não há se falar em extinção da punibilidade. Igualmente, mostra-se despicienda a suspensão da ação penal, porquanto, mesmo após o trânsito em julgado da condenação, é possível a extinção da punibilidade pelo efetivo pagamento do tributo. (STJ, 2018). BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 91237/SP. Relator (a): Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Órgão julgador: T5 – Quinta Turma. Data de julgamento: 20/02/2018. Publicação: 28/02/2018.   


[…] Pagamento do débito tributário. Extinção da punibilidade do agente. Admissibilidade. Inteligência do art. 9º, § 2º, da Lei nº 10.684/03. […] Recurso parcialmente provido para, afastado o óbice referente ao momento do pagamento, determinar ao juízo das execuções criminais que declare extinta a punibilidade do agente, caso venha a ser demonstrada, por certidão ou ofício do INSS, a quitação do débito. 1. Tratando-se de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A, § 1º, I, CP), o pagamento integral do débito tributário, ainda que após o trânsito em julgado da condenação, é causa de extinção da punibilidade do agente, nos termos do art. 9º, § 2º, da Lei nº 10.684/03. Precedentes. (STF, 2016) BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 128245/SP. Relator (a): Min. Dias Toffoli. Órgão julgador: Segunda Turma. Data de julgamento: 23/08/2016. Publicação: 21/10/2016. 


Neste sentido, Moura (2016) propõe o questionamento acerca da benesse concedida aos crimes que, em tese, deveriam ter sua reprovabilidade mais acentuada em virtude de sua gravidade e, de forma cirúrgica, Moura (2016, p. 137) assevera que essa conduta assumida pelo estado

[…] a) desrespeita-se o princípio da desproporcionalidade; b) perpetua-se a discriminação social e econômica mediante a discriminação legal em afronta direta à igualdade material; c) consagra-se o princípio da co-culpabilidade às avessas […].   

Em corajosa assertiva, Bastos apud Moura (2016, p. 137) assinala que  

[…] deve-se partir para a extinção da punibilidade do ladrão, com a mesma tranquilidade com que se ignoram os milhões sonegados em tributos ao erário, quando se procede, nas mesmas circunstâncias, ao pagamento ou, para uns, ao simples parcelamento do débito.  

Ante o exposto, o que se almeja ao analisar, ainda que de forma sucinta, a coculpabilidade às avessas, é estabelecer uma crítica quanto à incoerência e os tratamentos díspares dispensados pelo legislador aos diferentes crimes e agentes delitivos.  

O que se verifica, em grande monta, é que em crimes praticados por pessoas abastadas economicamente, que sempre foram incluídas socialmente e que tiveram, por vezes, os seus direitos e garantias fundamentais assegurados pelo Estado, o legislador previu situações de flagrante benevolência, hipóteses, inclusive, de extinção da punibilidade destes quando, na verdade, deveria elevar ainda mais a reprovabilidade de suas condutas.

E não menos, nos crimes em que são mais facilmente cometidos por pessoas vulneráveis e marginalizadas socialmente, há a tímida previsão de situações em que é possível atenuar as penas, restando patente a discrepância entre os tratamentos dispensados pelo Estado aos diferentes agentes delinquentes, acentuando o caráter seletivo do Direito Penal atual.  


REFERÊNCIAS 

MOURA, Grégore Moreira de. Do princípio da co-culpabilidade no direito penal. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016. 

José Daniel Criscolo Figueiredo

Advogado criminalista (MG)

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