Art. 217-A, § 1°, do Código Penal, e a presunção de vulnerabilidade
Art. 217-A, § 1°, do Código Penal, e a presunção de vulnerabilidade
Até antes da entrada em vigor da Lei n.° 12.015, de 07 de agosto de 2009, no Título relativo a Crimes Contra os Costumes (atualmente, Crimes Contra a Dignidade Sexual), o Código Penal, no art. 224, alíneas a, b e c, estabelecia as hipóteses de presunção de violência nessa modalidade de crimes, uma delas, quando a vítima fosse alienada ou débil mental, e o agente conhecesse essa circunstância.
Dentre várias alterações operadas pela Lei n.° 12.015/2009, criou-se uma presunção de vulnerabilidade para as pessoas menores de 14 anos de idade (art. 217-A, caput, do CP) e para as pessoas que, por enfermidade ou deficiência mental, não possuam o necessário discernimento para atos de natureza sexual, ou que, por qualquer outra causa, não possam oferecer resistência (art. 217-A, § 1°, do CP), revogando-se o art. 224 do CP.
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Note-se que, no regime anterior à Lei n.° 12.015/2009, o que se presumia era a violência, e não, como agora, a vulnerabilidade da vítima. Mas a distinção maior não é propriamente esta, sendo bem mais profunda, e, não obstante decorridos quase 10 anos da entrada em vigor da lei, ainda é bastante ignorada.
Com efeito, para que se tenha por caracterizado o crime de estupro de vulnerável, na figura da parte inicial do § 1° do art. 217-A do Código Penal, não basta que a pessoa com quem o agente mantém práticas sexuais seja portadora de enfermidade ou deficiência mental. É imprescindível que, em decorrência dessa moléstia ou déficit mental, como relação de causa e efeito, a pessoa tenha ausente o necessário discernimento para os assuntos do sexo.
Do contrário, ainda que a pessoa ostente alguma enfermidade ou deficiência de ordem mental, mas mantendo preservado o discernimento para atos sexuais, cuidar-se-á o fato de um indiferente penal.
É de notório conhecimento que há uma gama enorme de anomalias e patologias psíquicas, listadas na Classificação Internacional de Doenças, variando de grau, profundidade e maior ou menor comprometimento da capacidade de discernimento de seu portador para os atos gerais da vida.
Destarte, para que se tenha por presente e configurado o crime previsto no § 1° do art. 217-A do Código Penal, a falta de compreensão para as práticas sexuais em decorrência de enfermidade ou deficiência mental deverá estar devidamente comprovada no processo, através de laudo pericial, com possibilidade de ampla perquirição durante a instrução probatória.
Vale enfatizar, o laudo pericial deverá esclarecer se se trata de pessoa que, não obstante portadora de alguma enfermidade ou deficiência mental, pode manter uma vida sexual livre e consciente, com amplo discernimento sobre o assunto, ou se, ao reverso, se é uma pessoa incapaz de anuir conscientemente sobre atividade sexual.
Portanto, não basta ao perito afirmar monossilabicamente “sim” ou “não” ao responder se a pessoa é portadora de deficiência ou enfermidade mental. Deverá o expert perquirir se há comprometimento da capacidade de discernimento para o sexo.
Em julgamento nessa linha de raciocínio, relativo a fato praticado já sob a vigência da Lei n.° 12.015/2009, o Terceiro Grupo Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu que
A reforma penal passou a exigir que, além da enfermidade ou deficiência mental, a vítima não possua o necessário discernimento para a prática do ato, é a redação do art. 217-A, § 1º, do CP (Embargos Infringentes n.° 70044206241, Rel. Des. Ícaro Carvalho de Bem Osório, julgado em 21.10.2011).
Ainda na órbita do Tribunal de Justiça gaúcho, a Sexta Câmara Criminal considerou que um laudo psicológico realizado após uma única entrevista com a suposta vítima, e baseado a partir do que esta falou, não se presta para o fim de comprovar a alienação mental, o qual deveria ter sido realizado, modalidade de exame pericial que é, na forma prescrita no Código de Processo Penal.
Mais, ainda, nesse mesmo julgado, apontou-se que o auto de exame de corpo de delito é insuficiente para a comprovação da debilidade mental se não explicitar como chegou a tal conclusão (Apelação-crime n.° 70050841105, Rel. Des. José Antônio Daltoé Cezar, julgada em 25.10.2012).
Com o advento da Lei n.° 13.146, de 06 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), operou-se significativa alteração legislativa. Veja-se que até então, o Código Civil, no art. 3º, II, considerava absolutamente incapazes para os atos da vida civil os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tivessem o necessário discernimento para a prática desses atos, dispositivo revogado com a entrada em vigor do mencionado Estatuto.
Mas a inovação mais significativa, no que diz com essa interação entre Direito Civil e Direito Penal, é a previsão de que a deficiência não altera a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para exercer direitos sexuais e reprodutivos (art. 6°, II, da Lei n.° 13.146/2015). Vale enfatizar que, ao conceituar deficiência, a mencionada lei esclareceu que
Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (art. 2° da Lei n.° 13.146/2015).
Quer dizer, a pessoa portadora de deficiência mental, por si só, não perde a capacidade de discernir e anuir com atos de cunho sexual, tendo o legislador reconhecido explicitamente o direito dos deficientes mentais à atividade sexual, inclusive, sobre o direito de decidir ter filhos.
Por óbvio, se a deficiência mental for de grau e profundidade que retire de seu portador a capacidade de compreensão e entendimento sobre a prática sexual, quem com ele praticar atos de sexo, ficará sujeito à responsabilização penal.
Nesse ponto, é possível mesmo traçar um paralelo entre a situação do sujeito inimputável (art. 26, caput, do CP) e a da vítima portadora de enfermidade ou deficiência mental (art. 217-A, § 1°, do CP).
No primeiro caso, o agente, em decorrência de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não possui a capacidade de compreender a ilicitude de sua conduta ou de se determinar conforme essa compreensão, sendo considerado inimputável para os fins penais.
No segundo, a vítima é pessoa com deficiência ou enfermidade mental e, como resultado disso, não possui a capacidade de discernimento para a prática sexual. Em ambos os casos, deve haver relação de causa e efeito entre a anomalia mental e a ausência de capacidade de compreensão.
Outra disposição da Lei n.° 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), com evidente repercussão na esfera do processo penal, é aquela que determina que a avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo; os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais; a limitação no desempenho de atividades; e a restrição de participação (art. 2°, § 1°, com vigência após decorridos 48 meses da publicação da lei).
Em síntese, a vulnerabilidade estabelecida na parte inicial do § 1° do art. 217-A do Código Penal deve ser interpretada no sentido de que somente haverá crime se a vítima for portadora de deficiência ou enfermidade mental que lhe retire a capacidade de discernir com práticas sexuais.
Vale dizer, a livre determinação e orientação para os assuntos sexuais deve estar comprometida por conta de uma daquelas anomalias, não tendo a vítima a necessária compreensão para o sexo, desde que, ademais, o agente tenha conhecimento dessa circunstância e dela tenha se aproveitado.
Em verdade, trata-se de mera observância do princípio da legalidade penal: somente poderá haver punição se houver a prática de um fato previamente descrito em lei como crime, desde que totalmente preenchido o colorido hipotético da norma penal.