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Colaboração premiada e o limite de interferência do julgador

Aproveitando mais uma parte de estudos do mestrado, traz-se à polêmica sobre até que ponto e/ou qual é o limite de intervenção do Poder Judiciário na colaboração premiada, mais especificamente no que toca aos benefícios que podem ser concedidos ao colaborador.

Não é novidade que a negociação na colaboração premiada é efetivada entre Ministério Público e o agente que receberá benefícios caso, em razão do acordo, resulte: na identificação de outros autores ou partícipes da organização criminosa e também das infrações penais que tenham perpetrado (inciso I); na revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas entre os integrantes da organização criminosa (inciso II); na inviabilidade da consumação de infrações penais que seriam cometidas em razão das atividades dessas organizações (inciso III); no resgate, ainda que parcial, do produto ou lucro obtido pela prática das referidas infrações penais (inciso IV); e na localização de vítimas desde que preservada sua integridade física (inciso V) – art. 4º da Lei nº 12.850/2013.

Neste breve texto, a abordagem será restrita à verificação da caracterização, ou não, de ativismo judicial na interferência do julgador quanto às benesses, seja em razão do resguardo de direitos fundamentais em prol do colaborador seja em virtude da proibição da proteção deficiente por parte do Estado resultante da ausência de instauração de persecução penal ou de aplicação diferenciada de pena aos integrantes de organizações criminosas.

A Lei nº 12.850/2013, na parte que aqui interessa, na Seção I do Capítulo II, regulamenta o procedimento referente à negociação do acordo da colaboração premiada.

Apesar de muitos discordarem do instituto em comento, é inviável deixar de reconhecer que os benefícios dela constantes devem ser aplicados àqueles que se enquadram na qualidade de colaborador, ao menos em razão de política criminal.

Os benefícios que podem ser concedidos ao colaborador, caso haja condenação, são o perdão judicial, a redução da pena em até 2/3, a substituição da sanção privativa de liberdade por restritivas de direitos.

Durante a instrução criminal, poderá haver a suspensão do processo e o prazo da prescrição, em até 1 ano, ou sobrestamento do oferecimento de denúncia pelo mesmo prazo. Depois da sentença, poderá haver redução da pena até a metade ou a progressão de regime, ainda que não preenchidos os requisitos objetivos.

A legislação em comento, em seu art. 4º, §§ 7º e 8º, prevê a seguinte atuação por parte do Magistrado:

§ 7º  Realizado o acordo na forma do § 6º, o respectivo termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor.
§8º  O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto.

Observa-se, então, que ao julgador cabe examinar se na negociação foram atendidos todos os requisitos legais, especialmente o aspecto voluntário por parte do colaborador no acordo, para, homologá-lo.

Verifica-se, ademais, que referido diploma legal permite que o Magistrado se recuse a homologar o acordo de colaboração premiada, em determinadas hipóteses, podendo, além disso, adequá-lo ao caso concreto.

Mas, daí, surge a indagação: qual é o limite de interferência do julgador? Se o Magistrado recusar a proposta e/ou adequá-la incorre em “ativismo judicial”, no sentido advertido por Elival da Silva RAMOS (2015: 14)? Vale dizer, na

ultrapassagem das linhas demarcatórias da função jurisdicional, em detrimento principalmente da função legislativa, mas, também da função administrativa e, até mesmo, da função de governo. Não se trata do exercício desabrido da legiferação (ou de outra função não jurisdicional), que, aliás, em circunstâncias bem delimitadas, pode vir a ser deferido pela própria Constituição aos Órgãos Superiores do aparelho Judiciário e sim da descaracterização da função típica do Poder Judiciário, com incursão insidiosa sobre o núcleo essencial de funções constitucionalmente atribuídas a outros Poderes”.

A legislação não dispõe qual é o limite dessa (e se) possível interferência do Poder Judiciário no que acordado entre o Ministério Público e o Colaborador, sendo necessário que se estabeleça autocontenção (passivismo?) judicial, sob pena de intervenção inadequada na negociação então realizada.

A matéria, especificamente quanto à Lei nº 12.850/2013, é bem abordada por FREDERICO VALDEZ PEREIRA (2014: 141-3), cuja lição, além de acentuar que o acordo trata-se de um compromisso entre o Ministério Público e o Colaborador, como únicos protagonistas do acerto referente à colaboração premiada, “deixando para o juiz papel equidistante de controlar a observância das formalidades no ajuste, verificar se foram respeitadas as garantias e as obrigações dos colaboradores, bem como aferir o conteúdo das delações e a extensão do prêmio”, traz, as seguintes anotações:

“Ao magistrado não se poderia atribuir a gestão em concreto dos arrependidos, não caberia a ele encaminhar os acertos com o colaborador, tampouco participar ativamente na tomada de suas declarações e na oferta do benefício premial como correlato dos informes prestados; deveria impender ao agente do Ministério Público a coleta das revelações, conduzindo a proposta de prêmio, enquanto atividade preliminar eminentemente investigativa. A preservação da imparcialidade judicial recomenda que ao juiz se atribua apenas, na fase preliminar, a tarefa de fiscalização sobre a observância das formalidades e da legitimidade do acordo, no sentido de verificar se foram atendidos, numa primeira análise, os pressupostos legais e observados os direitos e garantias dos arrependidos, em controle que se poderia chamar externo. Atuação judicial na fase investigativa, para além da fiscalização quanto à regularidade do procedimento colaborativo conduzido por membro do Ministério Público, aproximaria o magistrado por demais da figura do juiz de instrução, ensejando questionamento sobre a imparcialidade para o julgamento posterior da causa. (...)”

Por essas razões, o mesmo autor entende que, apenas após “encerrada a conduta colaborativa e apurados os fatos, é que o juiz, avaliando a eficácia da cooperação, os fatos revelados, a postura cooperante, bem como todos os demais elementos envolvidos, irá reconhecer os efeitos benéficos do instituto perante o colaborador, homologando os ajustes quanto ao conteúdo” (2014: 145).

Das informações prestadas pelo, ainda tão presente, Ministro TEORI ZAVASCKI, nos autos do HC nº 12.483/PR, da relatoria do Min. DIAS TOFFOLI, extrai-se a seguinte diretriz, quanto ao referido limite:

“(...) o âmbito da cognição judicial na decisão que homologa o acordo de colaboração premiada é limitado ao juízo a respeito da higidez jurídica desse ato original. Não cabe ao Judiciário, nesse momento, examinar aspectos relacionados à conveniência ou à oportunidade do acordo celebrado ou as condições nele estabelecidas (...)”

 Partindo-se da premissa de que o ativismo judicial cuida-se de extrapolação de limite na atividade judicante (ABBOUD e LUNELLI, 2015: 21-47), o fato de o Magistrado não concordar com o benefício negociado entre o Ministério Público e o Colaborador, dá-lhe o condão de reexaminar o acordo e determinar a aplicação de outra benesse mais branda ou outra menos favorável?

A resposta mais consentânea parece ser negativa!

Isso porque as normas contidas nos parágrafos que preveem a participação “ativa” do Magistrado no acordo de colaboração premiada tendem a se cingir às regularidades formais do negócio entabulado, mas não no que se refere ao benefício que se venha alcançar em caso de eventual condenação penal.

Ora, se o Ministério Público firmou com o Colaborador, na presença e com anuência de seu Advogado, acordo que resultará na substituição da pena por restritiva de direito, que fundamento legal poderia levar o Magistrado a conferir ao Colaborador a redução da pena em 2/3 em vez da permuta negociada?

De igual modo, se o Ministério Público firmou com o Colaborador, na presença e com anuência de seu Advogado, acordo que resultará progressão de regime, que fundamento legal poderia levar o Magistrado a conferir ao Colaborador a redução da pena pela metade em vez da possibilidade de cumprimento da sanção em regime prisional menos gravoso?

Não há justificativas para tanto, notadamente se se considerar que o nosso ordenamento jurídico constitucional adotou o sistema acusatório, no qual o Magistrado não exerce ato senão o que lhe é inerente como julgador.

Por essas breves razões, postas de modo singelo e sumaríssimo, e não se olvidando da teoria garantista integral (FERRAJOLI, 2006) adotada pela Constituição da República, em determinadas situações, entende-se possível a interferência, por parte do Poder Judiciário, nos acordos de Colaboração Premiada, tão somente nas hipóteses em que se constate flagrante ofensa aos direitos fundamentais, seja do indivíduo seja da coletividade.


REFERÊNCIAS

ABBOUD, GEORGES; e LUNELLI, GUILHERME. Ativismo Judicial e Instrumentalidade do Processo. Diálogos entre Discricionariedade e Democracia. In Revista de Processo 242/2015, p. 21-47. 

FERRAJOLI, LUIGI. Garantismo – uma discussión sobre Derecho Y democracia. Madri: Trotta, 2006, 132p.

PEREIRA, FREDERICO VALDEZ. Delação Premiada – Legitimidade e Procedimento. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2014, 218p.

RAMOS, ELIVAL DA SILVA. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 14.

Vilvana Damiani Zanellato

Chefe de Gabinete da Procuradoria-Geral Eleitoral. Mestranda em Direito Constitucional. Professora de Direito.

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