Comentários ao projeto anticrime de Sergio Moro
Comentários ao projeto anticrime de Sergio Moro
Em quase todo o país é de conhecimento notório que nos jogos de futebol da várzea o dono da bola tem preferência no campo. Nem se cogita que ele não jogue podendo ser o maior “perna de pau” do mundo. Ele sempre vai jogar por que ele é o dono da bola e ele cria as regras que bem entender. Ninguém o contraria.
Assim nos parece, nos últimos anos, as regras criadas pelo Dr. Moro, “o dono da bola” que agora cria as regras que bem entende no processo, pois é de conhecimento notório que, enquanto juiz, o mantra era “os fins justificam os meios”. Logo, faço o que bem entendo no processo. Lembre-se que o TRF da 4ª Região chegou a proferir que a “Lava-Jato” não seguia as regras processuais normais: mas quais regras então seguiria?
Pode isso, Arnaldo?
O projeto anticrime de Sergio Moro
Agora surge a proposta de novas regras para o Processo Penal, chamado projeto de lei anticrime ou projeto anticrime. E como diz uma colega da Docência:
Não há o que não haja.
Veja a íntegra do projeto anticrime de Sergio Moro
- Clique AQUI para ler a íntegra do projeto anticrime
Novamente o dono da bola trocando as regras, impondo as regras que bem entende, pois agora, verdadeiramente, é o dono da bola, pois é o Ministro da Justiça amparado por uma proposta de Governo (no executivo), bem como de Legislativo (amparado em propostas de campanha de diminuição de direitos fundamentais).
A democracia se esvai cada vez mais com proposta de lei meramente simbólica (a fé na lei, pois a lei nos salvará), por exemplo, a ausência de efetividade no que se refere às propostas para o sistema carcerário (nunca no que se refere à proibição das condições inumanas nas cadeias).
Além de denunciar, este artigo, é preciso demonstrar que se faz necessário resistir a este vilipêndio (a resistência se dá pela denúncia pela escrita, pela doutrina, ela deve “criar os constrangimentos para extinguir essa prática” (STRECK, 2019, p.81).
Aqui vai para além da(s) pobre(s) tese(s) de que se você é contra o pacote proposto pelo “salvador”, você é de “esquerda” (a favor da bandidagem) e se é a favor do pacote, você é de “direita” (a favor da desumanização das cadeias).
Não, devemos fugir desse discurso reducionista e perceber que as mudanças não são só para aqueles que cometem crimes, mas sim para toda a sociedade brasileira, pois o Processo Penal é para todos e por isso a importância de sair da superfície e discutir mais, “é a provocação a um processo de compreensão do ‘todo’, ao mesmo tempo que bloqueia, por sua recorrência incômoda e indeclinável, qualquer invectiva de universalização totalizante” (SOUZA, 2018, p. 18), antes de aprovar tão importantes mudanças.
O que parece bem evidente é que a escrita serve para denunciar, de forma crítica, a proposta que tira mais direitos dos cidadãos, sempre com o discurso que a sociedade não pode mais esperar, de que a “bandidagem” está solta e que é preciso ser duro com ela, quando na verdade se mudam as regras que afetam todo o sistema processual e consequentemente todo o Brasil.
Neste momento, por conta do tempo e espaço, é necessário focar apenas em um ou alguns pontos, pois não é o espaço para o aprofundamento do debate, mas sim de trazer um alerta pelo que está por vir.
No que se refere à proposta de ingresso da plea bargaining, tem-se que devemos ter o maior cuidado possível, pois vem à tona a lógica negocial[1] (GARPON; PAPADOPOULOS, 2008, p. 52] para dentro do processo penal com força (digamos, em parca síntese que o que ocorreu na Operação “Lava-Jato” foi apenas uma câmara de experiência) e afetará todo o sistema processual brasileiro.
Deve-se tomar cuidado para que não ocorra o que ocorre nos países, como, por exemplo, os Estados Unidos, em que 95% dos casos criminais são negociados, pois o sistema processual penal, a defesa processual penal é cara, logo, aquele pobre que não tem condições de se defender acaba por sucumbindo as proposta feita pelo acusador (sistema altamente seletivo).
Veja que é utópico pensar que com o poder (acusador-MP ou Delegado de Polícia, na Delegacia, na porta da cadeia) é possível negociar. No momento de estresse, no momento de tensão, no momento de apresentar as cartas na mesa não se consegue negociar (para negociar é necessário ter/estar em pé de igualdade com a outra parte ou ter um bom trunfo, um bom negócio para propor, pois senão sucumbirá mais uma vez aos mandos e desmandos do poder).
No sistema atual não estamos em pé de igualdade (defesa e acusação), mas temos condições, ainda que bem difíceis impostas por este mesmo poder que insiste em usurpar garantias. Em que pese isso, temos as condições ainda de defender as pessoas, defender os cidadãos que são acusados pelo Estado, de praticar a defesa ampla, ainda que com todas as tentativas de cerceamento da defesa.
Mas agora, com esta proposta de mudança legislativa, ocorre uma drástica mudança do sistema processual pátrio, do continental para o anglo-saxônico. É necessário saber jogar mais e melhor por que, ao que parece, muda-se a “goela abaixo” a cultura jurídica do nosso país (GARPON; PAPADOPOULOS, 2008, p. 13).
Vejam que o que menos importa são direitos aqui. Tanto é que a pessoa, no sistema da “delação premiada”, tem-se que se declarar “culpado” para poder negociar. Basta ver o art. 4º, §7º, da Lei 12.850/2013. Nesta proposta, o que menos importa são os direitos e garantias constitucionais, a ampla defesa, o contraditório e a presunção de inocência que, ao que parece, leva mais um golpe fulminante no rim.
Nós, advogado criminalistas, quando entramos neste jogo, após “lava-Jato”, após essa cultura recrudescedora que tem se estabelecido no Brasil nos últimos anos, após Dr. Sérgio Moro, estamos figurativamente entrando no jogo no segundo tempo, com placar de 2×0, contra o time do Real Madri, sendo que entramos em campo com o nosso time de várzea.
Sabe quando vamos reverter o placar? Nunca! As regras do jogo devem ser mantidas, mas qual jogo? O jogo de um processo democrático, constitucional em que se respeite as garantias fundamentais das pessoas acusadas (ROSA, 2017).
Já estávamos perdendo agora, então, estamos perdendo de lavada. Mas quem está perdendo? Pode você pensar que somos nós, advogados criminalistas, defensores de bandidos, mas está equivocado, pois quem está perdendo, quem sai perdendo é toda a sociedade brasileira, pois o que menos importa é ela, o que menos importa é o crime cometido, o que importa é a punição, pois até alteração da imputabilidade será permitida (para esclarecer e melhorar a linguagem – até o crime que te acusam pode ser mudado independentemente da sua conduta, ou seja, se a pessoa cometeu um crime “X”, na hora do negócio pode ser mudado para o crime “Y”).
A pergunta que fica:
Pode isso, Arnaldo?
Sim, agora poderá! Se for aprovado, é claro… mas será!
REFERÊNCIAS
GARAPON, Antoine; PAPADOPOULOS, Ioannis. Julgar nos Estados Unidos e na França: cultura jurídica francesa e Common Law em uma perspectiva comparada. Tradução: Profª. Renina Vasconcelos. Revisão: Profª Mirian Alves de Souza. Prefácio e tradução brasileira: Roberto Kant de Lima. Prefácio de Stephen Breyer, juiz da Sistema Corte dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 4 ed. rev. atual. e ampl. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
SOUZA, Ricardo Timm. Ética do escrever: Kafka, Derrida e Literatura como crítica da violência. Porto Alegre. Zouk, 2018.
STRECK, Lenio Luiz. Precisamos falar sobre direito e moral: os problemas da interpretação e da decisão judicial. 1 ed. Florianópolis [SC]: Tirant Lo Blanch, 2019.
NOTAS
[1] Os autores versam que segundo a definição do dicionário jurídico a plea bargain ou plea bargaining “é ‘um acordo negociado entre procurador e um acusado ao termo do qual o acusado se declara culpado por uma infração menor, ou por uma das acusações, em troca de uma concessão, por parte do procurador, habitualmente de uma pena menos severa ou do abandono das demais acusações’”.
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