ArtigosProcesso Penal

Como o risco moral é variável da decisão judicial de prisão cautelar

Como o risco moral é variável da decisão judicial de prisão cautelar

Por Alexandre Morais da Rosa e Thiago Oliveira Castro Vieira

O desconhecido, a informação assimétrica, o futuro, são fatores que compõem a decisão judicial, justamente porque operam no campo da probabilidade, em que os indicadores não são mais do que predições. Daí que a complexidade do processo humano de tomada de decisão transborda para além dos limites estreitos da lógica da subsunção.

Parafraseando Shakespeare, há muito mais coisa entre a subsunção do caso concreto à normal legal em abstrato do que pode imaginar nossa vã filosofia. Como bem pontuou Paulo Freire em sua clássica obra A Importância do Ato de Ler, “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”.

Cada julgador é um ser humano único, com CPF, RG, história de vida e mapa mental próprios. E isso impacta no jogo processual. A matéria prima para toda tomada de decisão são os dados que comporão a grelha cognitiva do processo e a informação daí decorrente. A busca por dados e informação, contudo, é precedida por uma escolha sobre quais hipóteses devem ser testadas contra a realidade e quais os critérios de relevância serão adotados na sua coleta (Peter Drucker).

Deixar de influir nessa escolha, ainda que o ônus da prova pertença exclusivamente a acusação, representará a perda de uma chance. Em outras palavras, o jogador passa o seu turno para o adversário sem ter movido suas peças. O que pode perfeitamente fazer parte da sua estratégia, desde que o jogador esteja consciente dos riscos inerentes dessa inação. A assimetria ou falha da informação elevará o risco moral e a possibilidade de um resultado indesejado. 

Esta categoria – risco moral (moral hazard) – não é própria do direito processual penal. Compõe o ferramental de economistas e daqueles que se dedicam a análise econômica do direito. De acordo com o economista Paul Krugman, o risco moral ocorre quando assimetria da informação levam a “situação em que uma pessoa toma a decisão sobre quanto risco deve correr, enquanto outra pessoa suporta o custo se as coisas correm mal.” Como os dados e as informações no campo do processo penal são incompletas ou assimétricas, porque além da informação, associa-se a necessidade e os custos de provar (deveria prevalecer a lógica da presunção de inocência).

Embora denominada de “risco moral”, atualmente a questão é tratada como eminentemente econômica, ou seja, implica em reconhecer como as ações ocultas de um dos agentes da interação pode influenciar na relações estabelecidas. É que a assimetria de informações entre os jogadores pode gerar avaliações cognitivamente falhas e, por isso, comportamentos judiciais enviesados

No clássico exemplo da aquisição de uma garrafa de água, não há risco moral, porque tanto o vendedor, quanto o comprador possuem informações similares sobre o produto (H2O). A situação de um reparo em um veículo, contudo, tem um evidente desequilíbrio de informações: nem todos os consumidores sabem qual é o real problema do motor e se de fato é necessário substituir a “rebimboca da parafuseta”. A assimetria de informação cria um risco de se gastar por um serviço que não se precisa.

Mas o que se pretende ressaltar é a possível utilização da lógica que rendeu o Prêmio Nobel de Economia ao Professor Joseph Stiglitz, ou seja, a questão das “Informações Assimétricas”, cujo exemplo dos vendedores de carros usados nos EUA foi objeto.

Segundo Stiglitz, quando se procura um carro usado, os “vendedores” utilizam-se de diversos predicados que procuram valorizar o “bom estado”, o fato de ser “único dono”, em “excelente estado de conservação” e, como não se conhece a reputação do vendedor, sabe-se que tende a estar “dourando a pílula”, isso é, inflando as qualidades do carro para além da realidade.

Faz parte do negócio de compra e venda de carros usados valorizar o objeto da venda, até porque sabe-se que o vendedor possui muito mais informações do veículo (ter problemas de motor, hidráulicos, consertos, acidentes etc.) do que o comprador.

Daí a questão das informações assimétricas que, diante da ausência de informação qualificadas sobre o carro usado, faz com que se tenda a não levar a sério toda a informação apresentada. Diferente do vendedor desconhecido, todavia, quando um parente, amigo ou revenda com reputação aponta a qualidade do veículo, tende-se a emprestar maior credibilidade e a pagar valores mais próximo das tabelas médias de veículos ou, dependendo da procedência, até valores maiores. Isso porque o “avalista” da procedência empresta maior credibilidade às qualidades do veículo.

O ponto a ser destacado é que o mesmíssimo carro (com as mesmas qualidades) pode ser comprado por valor menor em uma revenda sem referências do que na que há referências. Então, a questão se desloca da análise intrínseca do veículo para o campo da reputação de quem afirma e garante a informação.

Munidos dessas noções se pode analisar a questão do encarceramento e também das prisões cautelares. Por exemplo, a decisão sobre a liberdade do conduzido em uma audiência de custódia, para além da discussão normativa da prisão (CPP art. 312), exige um salto para o futuro, desconhecido por definição. Isso porque, com a liberdade do agente, a probabilidade subjetiva de praticar alguma nova conduta criminalizada, evadir-se do distrito da culpa, destruir provas, agir de forma tal a prejudicar a instrução criminal, é diferente de zero.

Logo, além de ser importante o perfil do decisor (avesso, amante ou indiferente ao risco), surge a necessidade de demonstração de indicadores objetivos de mitigação do risco associado à decisão. É que o monitoramento e a conformidade do acusado/investigado gera a necessidade de custos associados, dentre eles, o monitoramento eletrônico, nem sempre disponível.

Mas em todos eles, a decisão judicial pressupõe a disposição de assunção de riscos por parte dos agentes que interagem. E a prisão cautelar, do ponto de vista do risco pessoal do membro do Ministério Público e do Juiz, tende a mitigar os riscos pessoais, motivo pelo qual se mostra como a tática dominante. Por isso a importância de se pensar as dificuldades decorrentes da interação processual no jogo da prisão cautelar em face da informação assimétrica. 

No âmbito da justiça criminal, o risco moral é facilmente percebido também quando se analisa o problema do encarceramento em massa. O Poder Judiciário determina as prisões sem se preocupar com os ônus gerados ao Executivo, responsável pela execução das ordens e quem suporta os encargos. Se não houvesse complacência com o “estado de coisas inconstitucional” do cárcere no Brasil, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF, ADPF 347), e os administradores passassem a ser responsabilizados, essa relação lastreada no risco moral já teria sido rompida.

A cumplicidade entre os Poderes, contudo, pacífica a relação, até porque os magistrados não arriscam a pele, dado que o risco de responsabilização é mínimo. O fardo recai exclusivamente nos presos que são obrigados a sobreviver em ambientes insalubres, superlotados, sem as condições mínimas de higiene e submetido a todo os tipos de violências físicas, psicológicas e simbólicas. Agravados em tempos de COVID.

Em uma sociedade política, econômica, cultural e racialmente desigual, com constantes atavismos escravocratas e ditatoriais (Saulo Mattos; Luciano Góes), que não apenas aceita, como comemora as mazelas do cárcere brasileiro sem se importar com os números inadmissíveis do genocídio em curso (Vinicius Assumpção), o risco para o magistrado não é prender demais, mas sim soltar aqueles selecionados por nossa política criminal. Os que cumprem a Resolução 62 do CNJ é que são tendencialmente perseguidos. Não raras vezes os juízes brasileiros sofrem ataques por parte da mídia e dos seus próprios pares por decisões que restituem a liberdade.

Nesta perspectiva, aqueles que militam na seara criminal devem analisar o perfil de risco daqueles para os quais irá se deduzir os pleitos, especialmente de prisão e liberdade. Em todos os caminhos o impacto estratégico deve ser antevisto e avaliado em face do respectivo perfil: a) amantes ao risco; b) adversos ao risco; e, c) indiferentes ao risco.

A avaliação tática é recorrente e sempre será uma aposta, mais ou menos, arriscada. Amantes do risco e avessos ao risco tendem a ter comportamentos diferenciados e, assim, a atitude perante o risco poderá ser um fator positivo ou negativo, devendo-se ter a capacidade de se afastar dos casos em que houver necessidade de posturas mais arrojadas ou conservadoras, em dissonância com o que o decisor pensa e sustenta.

O magistrado avesso a riscos diante de um pedido que resulte na liberdade, equipara-se, mutatis mutandis, ao consumidor diante de um produto novo, de uma marca nova. Ele não conhece o processo produtivo, o desempenho e a durabilidade do produto, se o preço a pagar for muito elevado, ele tende a deixar na prateleira, a não tomar riscos. Por isso, empresas de bens duráveis ao ingressarem em novos mercados ou a lançarem novos produtos, tendem a evitar sinais externos que reduzam as incertezas e mitigue o risco moral do consumidor, tal como, garantias acima do prazo legal. 

Na audiência de custódia, com o medo de ser escrachado/linchado imediatamente após a decisão, via redes sociais, a tendência dos julgadores é o de mitigar os riscos, promovendo a decisão mais conservadora, a saber, deixar o conduzido preso. Cabe ao defensor apresentar garantias documentais capazes de mitigar o risco moral do julgador, porque o blábláblá meramente argumentativo não diminui o risco e tende a ser uma tática dominada.

Então, colocar-se na posição do julgador que não quer correr riscos pode ser interessante para o êxito da estratégia. Neste sentido, advogados e defensores ao formularem pedidos de liberdade devem, além de refutar os fundamentos da prisão, emitir sinais externos que reduzam o risco moral ao qual os magistrados estão submetidos.

Conhecer as decisões anteriores do julgador e o que ele valoriza como relevante para além do contexto normativo ao conceder uma liberdade é fundamental para aumentar as chances de sucesso. Além disso, existem diversos bancos de dados que podem agregar segurança ao julgador sobre o passado do conduzido, ou seja, contas de água, luz, telefone, registros, cuja segunda via pode ser facilmente obtida (não precisa esperar o parente trazer, coisa de amadores).

Dominar a lógica do risco moral pode ser mais uma categoria importante para ampliar o horizonte cognitivo do processo e entender as razões silenciosas que operam no jogo penal da realidade, em que o fator risco sempre esteve presente, talvez como um fantasma. Cuidado. 

Leia também:

22 teses do STJ sobre provas no processo penal


Quer estar por dentro de todos os conteúdos do Canal Ciências Criminais?

Então, siga-nos no Facebook e no Instagram.

Disponibilizamos conteúdos diários para atualizar estudantes, juristas e atores judiciários.

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo