A competência híbrida da Lei Maria da Penha
A competência híbrida da Lei Maria da Penha
A Lei Maria da Penha surge em 2006 a fim de garantir as mulheres brasileiras uma vida sem violência. Como todas as pessoas sabem, a Lei surge a partir da condenação do Brasil pela Organização dos Estados Americanos sendo obrigado a criar legislação especifica para tratar sobre o fenômeno da violência doméstica e familiar contra a mulher em razão da omissão do Estado Brasileiro com o caso da bioquímica Maria da Penha.
A Lei surge a partir de audiências públicas realizadas nas diversas regiões do Brasil com apoio de organizações feministas brasileiras e da América Latina, a fim de garantir a pluralidade e diversidade na construção de uma legislação nacional de enfrentamento a violência de gênero.
A aprovação da lei se deu com cortes ao projeto inicial elaborado pelas mulheres, mas de forma a respeitar a Convenção Interamericana de Belém do Pará, ampliar os tipos de violência, garantir atendimento integral à mulher em situação de violência e também pensar nos agressores e na prevenção com educação.
Neste ano a Lei completará 12 (doze) anos de aprovação. É conhecida como a 3ª melhor Lei do mundo no combate à violência contra a mulher, mas infelizmente ainda temos uma fragilidade na sua aplicabilidade e eficácia, afinal não é possível mudar mentes apenas com leis, a cultura do machismo precisa ser combatida e debatida desde as escolas para que a próxima geração não mais naturalize a opressão contra as mulheres, nem as tais divisões “naturais” de papeis sociais e sexuais, afinal a lei não busca apenas punir, mas prevenir, educar e dialogar em todos os espaços sobre a importância do enfrentamento a violência contra as mulheres como uma causa de toda a sociedade.
Um dos principais pontos de debate na Lei é a sua competência híbrida. O que significa ter competência híbrida? É uma lei poder atuar tanto na esfera cível como criminal. No caso da Lei Maria da Penha, é a capacidade de agir com direito penal e também com direito de família, ou seja, a possibilidade da mulher ter não somente a Medida Protetiva de Urgência, mas na vara ou juizado especializado de violência doméstica e familiar ter o divorcio, alimentos, regularização de guarda e visitas, entre outros temas relativos ao Direito de Família, conforme segue abaixo o artigo 14 da Lei 11340/2006:
Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Como isso acontece hoje? Infelizmente no Brasil os tribunais apresentam resistência na aplicação da competência híbrida da Lei nas varas especializadas. Estados como Bahia, por exemplo, aprovaram resolução especifica para vedar a competência híbrida da Lei, atuando na esfera estadual contra uma Lei federal, Resolução 47 aprovada por desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia.
No artigo 3º da referida resolução 47 do Tribunal de Justiça da Bahia fica instituído que a competência cível será exclusiva para expedição e execução de Medidas Protetivas, conforme segue trecho:
Art. 3º Na área cível, a competência da Vara de Violência Doméstica abrange apenas o processo e a execução de Medidas Protetivas de Urgência, definidas nos arts. 22 a 24 da Lei Federal n° 11.340/06 (Lei Maria da Penha).
Em consonância com a Lei Federal já mencionada, há julgados no STJ que confirmam a necessidade de garantir que as varas especializadas cumpram sua competência híbrida a fim de minimizar os efeitos da revitimização de mulheres em situação de violência, conforme segue acórdãos:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. LEI MARIA DA PENHA. MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA EM TRÂMITE JUNTO À VARA ESPECIALIZADA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. ART. 14, DA LEI Nº 11.340/2006. COMPETÊNCIA HÍBRIDA. POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO PELO JVDFM. ACÓRDÃO ESTADUAL MANTIDO. RECURSO IMPROVIDO. 1. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da justiça ordinária têm competência cumulativa para o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do art. 14, da Lei nº 11.340/2006. 2. Negar o julgamento pela Vara especializada, postergando o recebimento dos provisionais arbitrados como urgentes, seria não somente afastar o espírito protetivo da lei, mas também submeter a mulher a nova agressão, ainda que de índole diversa, com o prolongamento de seu sofrimento ao menos no plano psicológico. 3. Recurso especial não provido. (REsp 1475006/MT, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/10/2014, DJe 30/10/2014)
RECURSO ESPECIAL Nº 1.496.030 – MT (2014/0288527-5) RELATOR : MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE RECORRENTE : C P DE O S ADVOGADO : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO MATO GROSSO RECORRIDO : A S L DA S ADVOGADO : SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS EMENTA RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE DIVÓRCIO DISTRIBUÍDA POR DEPENDÊNCIA À MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA PREVISTA NA LEI N. 11.340/2006 (LEI MARIA DA PENHA). 1. COMPETÊNCIA HÍBRIDA E CUMULATIVA (CRIMINAL E CIVIL) DO “JUIZADO” ESPECIALIZADO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. AÇÃO CIVIL ADVINDA DO CONSTRANGIMENTO FÍSICO E MORAL SUPORTADO PELA MULHER NO ÂMBITO FAMILIAR E DOMÉSTICO. 2. POSTERIOR EXTINÇÃO DA MEDIDA PROTETIVA. IRRELEVÂNCIA PARA EFEITO DE MODIFICAÇÃO DA COMPETÊNCIA. 3. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
Ainda ferindo a competência híbrida, em razão do artigo 165 do Novo código de processo civil, um juiz de São Paulo obrigou uma ex-mulher a participar de audiência de mediação sob pena de multa de 2% do valor da causa.
Embora o novo CPC estimule soluções consensuais nas ações de família, não faz sentido obrigar que uma mulher encontre com o ex-companheiro tendo sido vítima de violência doméstica.
O Desembargador José Carlos Ferreira Alves, da 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, entendeu dessa forma e cancelou a audiência de conciliação fixada pelo juízo de primeiro grau em um processo de divórcio. O desembargador disse
o ideal buscado pelo novo Código de Processo Civil, no sentido de evitar litígios, prestigiando as conciliações, não pode se sobrepor aos princípios consagrados pela Constituição Federal, relativos à dignidade da pessoa humana e dele derivados.
A partir da analise é possível perceber o quanto a Lei Maria da Penha é fundamental para combater o machismo e o patriarcado na sociedade brasileira, mas sem que a Lei seja aplicada realmente com investimento financeiro, politico e formativo não terá sua eficiência, efetividade e eficácia plena garantida e será apenas mais um papel.
REFERÊNCIAS
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