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OMS, “Comportamento Sexual Compulsivo” e Direito Penal (Parte 2)

OMS, “Comportamento Sexual Compulsivo” e Direito Penal (Parte 2)

Continuando a temática abrangida no texto anterior, nesta semana daremos atenção aos três pontos que ficaram por serem analisados sobre o reconhecimento do comportamento sexual compulsivo como um distúrbio mental pela OMS.


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São eles: 3) A consequência penal do reconhecimento do comportamento sexual compulsivo no caso concreto; 4) O posicionamento da jurisprudência atual nestes casos e 5) A relação entre o comportamento sexual compulsivo e o princípio da individualização da conduta e da pena.

Como mencionado no final do texto da semana passada, o reconhecimento do comportamento sexual compulsivo (CSBD) como um distúrbio mental levanta questionamentos sobre a existência de liberdade na conduta do indivíduo, algo atrelado ao livre arbítrio e à possibilidade concreta de aplicar sua vontade nas suas condutas.

Este fator, como vimos, está diretamente relacionado a noção do princípio da culpa penalmente reconhecida, o qual fundamenta a censura na ideia de liberdade da conduta do agente.

Desta feita, não teremos como falar em culpa do indivíduo se ele não for plenamente capaz de atuar conforme sua vontade. Com base nesta ideia, percebemos que a consequência penal do reconhecimento do CSBD como um distúrbio mental aponta para a imputabilidade como um aspecto a ser analisado no caso concreto.

A imputabilidade foi determinada pelo legislador no nosso Código Penal de forma negativa, ou seja, não há uma previsão expressa de quem será ou o que é a imputabilidade, mas sim uma indicação de quem será inimputável.

Consta na nossa legislação que serão inimputáveis os menores de 18 anos e aqueles que por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Nos ateremos à segunda situação, que envolve diretamente os casos de doença mental. O nosso Código prevê duas circunstâncias distintas:

1) Quando o agente é inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, é o caso previsto no art. 26, caput, que prevê como consequência jurídica a isenção de pena.

2) Quando o agente não é inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento, é o caso previsto no art. 26, parágrafo único, que prevê como consequência jurídica a redução de pena de um a dois terços.

Portanto, constata-se que, no caso concreto, é de extrema relevância verificar (através de perícia psicológica) qual o grau de influência da perturbação da saúde mental ou do desenvolvimento mental incompleto e retardado para fins de aferição da possibilidade de autodeterminação do indivíduo.

É neste panorama que se enquadra o distúrbio do CSBD. O reconhecimento pela OMS chama a atenção a uma verdadeira possibilidade de perda da autodeterminação do indivíduo, que poderia trazer consequências penais diversas caso fosse efetivamente investigada e analisada no caso concreto.

Não obstante o reconhecimento, a OMS deixou claro que ainda haverá outras pesquisas e testes para um melhor entendimento de como funciona os efeitos do CSBD no ser humano e como esse distúrbio surge e se desenvolve na mente humana.

A importância deste debruçar da OMS sobre o CSBD se deu na distinção entre este distúrbio e aqueles causados pelo vício em álcool, drogas e jogos. A preocupação nesta diferenciação para o Direito Penal está no fato de que os vícios citados acima não necessariamente excluíram a capacidade de escolha do indivíduo, o que refletirá na consequência penal prevista na nossa legislação.

Ainda dentro do Título reservado à inimputabilidade, o legislador previu dois casos que não são capazes de excluir a imputabilidade do agente (art. 28): a emoção e a paixão e a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos.

Na situação da embriaguez (por álcool ou drogas), o agente somente será isento de pena se ficarem constatados que: a embriaguez foi completa; decorreu de caso fortuito ou força maior e se o agente era, na época dos fatos, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (art. 28, §1º, CP).

Por outro lado, se, nestas mesmas circunstâncias, o agente não possuía apenas a plena capacidade de entender ou de determinar-se, o legislador escolheu como consequência jurídica a redução da pena de um a dois terços (art. 28, §2º, CP).

Portanto, verifica-se que, caso não houvesse a diferenciação entre o CSBD e os vício em álcool ou outros entorpecentes de efeitos análogos, somente poderíamos falar de isenção de pena na situação prevista no citado art. 28, §1º, CP, o qual pressupõe como elemento essencial que a embriaguez não decorra da própria vontade do indivíduo.

O STJ já proferiu acórdão em sede de habeas corpus reconhecendo a existência de compulsões sexuais, embora não tenha sido especificamente um caso de CSBD, no qual demonstrou uma posição bem restritiva ao reconhecimento dos efeitos destes distúrbios na possibilidade de diminuição da imputabilidade do indivíduo:

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. PRETENDIDA LIBERDADE PROVISÓRIA. PRISÃO EM FLAGRANTE. PACIENTE ACUSADO DE CONDUTAS PREVISTAS NOS ARTIGOS 241-A E 241-B DA LEI Nº 8.069/90, COMETIDAS POR MIEO DA INTERNET. INOCORRÊNCIA DE FLAGRANTE PREPARADO. NECESSIDADE DA MANUTENÇÃO DA PRISÃO. ORDEM DENEGADA NA PARTE EM QUE REMANESCEU. 1. Habeas Corpus objetivando a concessão de liberdade provisória a homem preso em flagrante pela prática, em tese, dos crimes capitulados nos artigos 241-A e 241-B da Lei nº 8.069/90, via internet. Pedido liminar indeferido. […] 5. Dentre as chamadas parafilias encontram-se manifestações sexualmente compulsivas como fetichismo, transvestismo fetichista, exibicionismo, voyeurismo, necrofilia e a pedofilia; os portadores dessas situações revelam padrão de comportamento caracterizado pela repetição como um quadro compulsivo. Essa compulsão acaba por trazer enorme dificuldade no controle da sua própria expressão significando um fator de maior propensão a condutas criminosas que podem vitimar pessoas que são a base das “fantasias” que permeiam a respectiva parafilia. 6. Sucede que mesmo os comportamentos que podem anteceder as condutas violentas do portador dessa parafilia são repudiados em todo o mundo dito civilizado, e entre nós constituem-se em infrações penais graves; nessa tipificação enxerga-se a presença do Direito Penal “preventivo” – a exemplo do que antigamente se fazia na capitulação das chamadas “contravenções penais” cujo objetivo era prevenir comportamentos danosos evolutivos para o “mal maior” – que visa reprimir atos que possam consubstanciar manifestações da parafilia aqui tratada, transtorno que pode evoluir para a situação muito mais séria de abuso sexual de pré-púberes. 7. Necessidade de manutenção da prisão. 8. Os protestos relativos à saúde do paciente devem ser encaminhados ao Juízo de origem. 9. Ordem denegada no que remanesceu para conhecimento.

E qual a relação entre o reconhecimento do distúrbio no caso concreto e o princípio da individualização da conduta e da pena? Este princípio postula que o magistrado se atenha a todas as circunstâncias especiais que envolveram o caso que está a julgar para fins de melhor visualização da conduta e dos fatores que a condicionaram, bem como para a determinação da sanção que melhor se adeque ao caso em questão.

Não se defende aqui que a simples verificação de um distúrbio mental seja capaz de isentar de pena um indivíduo, mas sim que o princípio da individualização exige que, no âmbito penal, seja verificado o grau de influência deste fator na possibilidade de autodeterminação do sujeito e que a sanção leve em consideração esta conjuntura.

Como ressaltado no texto anterior, é função da culpabilidade introduzir no Direito Penal estes vieses particulares de cada conduta e indivíduo nas suas práticas cotidianas. Lembremos: a pena é medida de culpabilidade do indivíduo.

Desta forma, o agir do magistrado deve ser voltado a averiguar estas situações para que consiga exercer de maneira mais justa e adequada o seu papel jurisdicional, bem como que sua decisão tenha respaldo constitucional.

Daniel Lima

Mestrando em Direito Penal e Ciências Criminais. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Advogado.

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