Comunicação entre Literatura e Tribunal do Júri
Diz-se que o Direito e a Literatura são ficções. Que o Direito é uma espécie de ficção essencial. Já a literatura, se trata de algo que está mais para o campo reflexivo, capaz de problematizar a realidade.
Se de um lado o Direito pretende aprisionar o presente a fim de projetar o futuro, a literatura propõe uma reflexão a partir da linguagem, transportando a realidade e possibilitando uma visão de mundo ampliada.
Alberto Manguel, na obra “No bosque do espelho: ensaios sobre as palavras e o mundo”, relata que: “De uma forma misteriosa, a aplicação das leis de uma sociedade é parecida com um ato literário: ela fixa a ação criminosa numa página, define-a com palavras, dá-lhe um contexto, que não é o do puro horror do momento, e sim o de sua recordação.”
Certa vez um grande advogado me disse que os melhores livros sobre Tribunal do Júri não falam sobre o Tribunal do Júri, eles falam sobre a alma humana. E por isso a necessidade de ler os clássicos. Até porque, o tribuno nada mais é do que um contador de histórias. E só há um único jeito de ser um bom contador de histórias: conhecendo as melhores histórias.
Além das narrativas, a literatura traz conceitos dos mais belos, justamente em virtude do dito no segundo parágrafo deste texto: o conhecimento literário nos permite uma ampliação da visão de mundo.
Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Marquez, através da corrente que ficou mundialmente conhecida como realismo mágico, possui uma das mais brilhantes narrativas que eu conheço. Capaz de prender o leitor do início ao fim, Cem Anos de Solidão agrega muito na bagagem intelectual do tribuno. Um dos fatos que faz-se necessário ressaltar da obra de Gabo é a importância de saber começar e terminar uma história.
O personagem Dom Quixote, criado por Miguel de Cervantes, traz um dos conceitos mais belos da liberdade, quando este a coloca na frente da vida, ao afirmar, para seu fidalgo Sancho, ser a liberdade um dos bens mais preciosos e que por ela, da mesma forma que pela honra, se deve arriscar a vida. O mesmo personagem é também dono da célebre frase: “A liberdade, Sancho, não é um pedaço de pão.”
Eduardo Galeano, numa linha mais poética, ao ser questionado sobre o que é a utopia, responde de forma magnífica: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”
Ainda sobre Galeano, este conceitua a justiça de uma das formas mais belas e reais, sobretudo a justiça brasileira, ao dizer que: “A justiça é como uma serpente, só morde os pés descalços.”
E o que dizer do erro de Otelo, personagem de William Shakespeare? Otelo conta para Desdêmona, sua esposa, que assassinou Cássio por saber que ele era seu amante. Ao ver Desdêmona chorar, Otelo possui certeza absoluta que ela o traiu. Contudo, Desdêmona chora porque com Cássio morto, seria impossível provar que nunca houve traição. Shakespeare nos ensina que, para evitar o Erro de Otelo, é preciso resistir à tentação de saltar para as conclusões, sendo necessário considerarmos motivos alternativos, diferentes daqueles que suspeitamos a partir da exposição das emoções.
Em Dom Casmurro, Machado de Assis foi capaz de criar um questionamento que perdura até hoje na mente dos leitores: Capitu traiu ou não Bentinho? Seria Machado de Assis um crítico ferrenho da “verdade real dos fatos”?
Jorge Amado, no brilhante livro Capitães de Areia, demonstra, com uma narrativa capaz de prender o autor do início ao fim, que por trás de um “criminoso” existe toda uma história de vida que, por vezes, é capaz de justificar determinados atos. Jorge nos mostra a importância de uma análise ampla da vida do transgressor, sobretudo acerca do contexto em que ele está inserido, para que um julgamento possa ser feito de forma justa.
Tem-se, portanto, que a literatura complementa o direito, sobretudo porque uma boa narrativa é imprescindível ao mundo jurídico. Mas mais do que isso: a literatura é capaz de humanizar o Direito, mostrando que este não precisa sempre desempenhar o papel de vilão da história.
Por fim, Os Miseráveis, de Victor Hugo, é uma verdadeira aula de criminologia. Destaca-se a homenagem feita por Cosette, que manda gravar no túmulo de seu pai adotivo, Valjean, um dos versos mais lindos que conhecemos: “Dorme. Viveu na terra em luta contra a sorte Mal seu anjo voou, pediu refúgio à morte O caso aconteceu por essa lei sombria Que faz que a noite chegue, apenas foge o dia!”
Portanto, caros Leitores, seja pela importância de uma boa narrativa, pelos conceitos sensíveis que alguns autores são capazes de trazer, ou então pelas metáforas que podem – e devem – ser utilizadas, tem-se que o júri não sobrevive sem a literatura. A literatura é a essência do Tribunal do Júri.