Concepção significativa de ação e os crimes de perigo abstrato
O estudo do Direito Penal dos últimos anos tem assumido uma postura crítica em relação ao que Jesús-María Silva Sanchez chamou de “tensão expansiva” desse ramo do conhecimento jurídico. Essa tensão deriva da busca por novos meios de se enfrentar, com êxito, a luta contra uma criminalidade que se afirma de forma quantitativa e qualitativa.
Assim, o Direito Penal estaria passando por uma “crise de crescimento”, à espera de sua consolidação como instrumento de controle social eficiente. Vivemos então o dilema do “ser ou não ser”, o que seria na verdade uma metamorfose provocada pela aceleração e complexização das relações na sociedade contemporânea (SILVA SÁNCHEZ, 2011. p. 34).
O momento que vivenciamos é teorizado por Ulrich Beck, que expõe seu pensamento em cinco premissas básicas: A primeira, parte da consideração de que vivemos em um mundo onde os riscos ganham uma nova dimensão, já que eles são inerentes às forças produtivas. Ou seja, temos condutas humanas geradoras de risco em massa como uma condição estrutural da sociedade.
A segunda premissa consiste no fato de que as facilidades proporcionadas pelo processo de desenvolvimento tecnológico e a globalização promovem o redimensionamento dos problemas vivenciados. A criminalidade passa a se interpenetrar nas estruturas de poder, mantendo estreitas relações com esse poder. A terceira premissa aponta que estamos diante de um processo de desenvolvimento que rompe com a lógica do capitalismo, porque os riscos advindos da modernização se transformam em um grande negócio.
Em outros termos, há um abandono dos “esquemas simplistas” de organização social em nome de um desenvolvimento tecnológico que visa a satisfação de necessidades humanas cada vez mais complexas. Esse processo gera a diluição das relações sociais e a complexização das relações de consumo. A quarta premissa de Beck está ligada ao patamar político que os novos riscos assumem por meio do esvaziamento do Estado.
Por mais que exista um sentimento contrário a globalização atualmente, há um enfraquecimento do Estado na sua capacidade de regular e promover uma expansão dos serviços ligados aos direitos sociais, em especial, saúde e educação. A pandemia expõe essa fratura no desenvolvimento global. Por fim, a quinta premissa aponta que há um “lado obscuro” no processo de desenvolvimento, onde a destruição da natureza, a devastação em massa e o auto arriscamento são possibilidades que não podem ser desprezadas (BECK, 1999. p. 27-30).
Não podemos prescindir dos avanços tecnológicos que vivenciamos, avanços ligados à pesquisa farmacológica, genética, informática, de comunicação etc. Eles foram incorporados de forma rápida em nosso cotidiano. o que deve ser mensurado é como a incorporação e regulamentação desse fenômeno estrutural da sociedade contemporânea se deu, em especial nas questões ligadas ao Direito penal.
Segundo Blanca Mendoza Buergo, o Direito Penal assume uma dimensão prevencionista ao incorporar esse fenômeno estrutural no ordenamento jurídico penal. As necessidades sociais e a complexidade do processo mudam a forma e os critérios de delineamento dos âmbitos de proteção em matéria penal, o que permitiu o (re) dimensionamento dos crimes de perigo abstrato (2001. p. 23).
Pois bem, quando pensamos na criminalização de uma conduta devemos pressupor uma lesão ou perigo de lesão de um bem jurídico, cuja legitimidade também se subordina a uma correspondente lesão a um direito subjetivo. Assim, a noção de direito subjetivo funciona, dentro de uma concepção de bem jurídico, como um conceito crítico e limitativo do bem jurídico.
Partindo dessa concepção, podemos afirmar que a criminalização só pode ocorrer quando há uma lesão efetiva ou um perigo concreto de lesão do bem jurídico. Essa exigência – perigo concreto ao bem jurídico – é a base de uma teoria crítica do delito, na medida em que limita o processo de execução dessa teoria (TAVARES, 2020. p. 108).
No caso dos crimes de perigo abstrato, Mirentxu Corcoy Bidasolo afirma que o legislador parte de uma valoração ex ante, centrada na consideração do perigo como elemento do injusto típico e na valoração ex post feita pelo aplicador do direito Penal ao analisar se a conduta, no caso concreto, foi capaz de criar uma situação de risco violadora do bem jurídico. Dessa forma, os crimes de perigo abstrato estariam legitimados a tutelar os interesses gerais e funcionais das instituições públicas, porque há uma complexidade e um interesse público que determinam a necessidade dessa forma de controle (1999. p. 226).
A técnica dos crimes de perigo abstrato promove uma antecipação da tutela penal que, em princípio, prescinde do requisito de uma lesão efetiva dos bens jurídicos para se conformar com a aplicação da pena a partir da mera colocação em risco do bem jurídico. A grande questão relativa à utilização dessa técnica está em precisar, de forma suficiente, quando teremos a lesão aos bens jurídicos e quais serão esses bens (CASTAÑON, 2001. p. 96).
A dificuldade gerada por essa técnica de criminalização de condutas leva os seus críticos a afirmarem que os crimes de perigo abstrato, por prescindirem da análise da conduta em face de seus efeitos concretos, representam, na verdade, uma forma de crendice do legislador. Um tipo de legislação simbólica voltada para a satisfação de interesses políticos e para criar uma sensação capaz de iludir os seus destinatários para justificar a sua legitimidade (TAVARES, 2020. p. 109).
O legislador ao manejar uma norma jurídica para criminalizar determinada conduta deve levar em consideração duas premissas básicas: as normas representam decisões de poder e são, também, determinações da razão. Esse duplo caráter que estabelece a estrutura do sistema jurídico positivo contemporâneo. Isso quer dizer que, as normas de conduta não devem ser consideradas apenas como uma decisão de poder, já que elas não estão alheias à racionalidade prática ligada à sua pretensão de validade. A pretensão de validade das normas deriva de um processo de argumentação racional na sua aplicação.
Quando analisamos os valores que a norma canaliza, podemos concluir que eles podem se resumir no valor central do sistema jurídico, a justiça, dentro de uma perspectiva que permita a interação com outros valores, tais como, a segurança jurídica, a liberdade, a eficácia, a utilidade, etc., que são aspectos parciais da ideia de justiça que o ordenamento jurídico pretende tutelar (PÉREZ, 2007. p.13-15).
Todos esses aspectos quando projetados sobre a norma penal nos revelam que ela não pode ser entendida apenas como uma norma objetiva e imperativa de determinação no âmbito da antijuridicidade, ela também possui um caráter valorativo já que suas disposições são baseadas em valorações e desvalorações, ou seja, em aprovações e desaprovações. Em outros termos, a norma contempla dois aspectos valorativos: o primeiro, quando ela valora determinado bem como objeto de proteção jurídica; o segundo, quando ela desvalora a conduta que, em determinadas circunstâncias, ataca tal bem jurídico e por isso também a ordem jurídica (PÉREZ, 2007. p.13-15).
Esses aspectos ressaltam que a conduta humana apresenta uma dimensão social que desloca a interpretação conceitual da ação, ponto de referência da teoria do delito, da perspectiva subjetiva para a percepção da conduta de alguém como algo que transmite um significado.
Dessa forma, quando se busca a compreensão de um conceito significativo de ação não podemos qualificá-lo como sendo um conceito ontológico, porque não está fundamentado no “ser” naturalista, nem tampouco pode ser qualificado como exclusivamente axiológico, pois não é totalmente situado no “dever ser”.
O que se tem é uma mudança de referências: sai a concepção cartesiana, que estabelece um conceito de ação como sendo um fato composto pela reunião de um fato físico (movimento corporal) e outro mental (a volição), e entra na construção do referencial a filosofia da linguagem, que passa a compreender a ação não como algo que os homens fazem, mas como o significado daquilo que eles fazem. Ação deixa de ser um substrato e passa a ser um sentido.
Esse processo de comunicação ou de percepção do significado não provém de uma realidade interna do sujeito, nem tampouco de sua realidade externa (objeto). O que existe é um processo de interação entre as duas realidades. A comunicação é resultado desse processo de interação, já que essa dinâmica produz uma percepção. A percepção não é algo traduzido em uma realidade, nem mesmo se concretiza em algo que “é”, nem deve ser compreendida apenas como uma valoração. A percepção é o sentido que damos à dinâmica existente entre o objetivo, realidade externa, e a realidade interna do sujeito (BUSATO, 2010. p. 146-148).
A partir do momento que o legislador estabelece a criminalização por meio de crimes de perigo abstrato, ele prescinde da análise dos efeitos concretos da conduta no meio social, ou seja, deixa-se de exigir que exista um mínimo de alteração da realidade, mediante indicadores sensíveis, para que a incriminações possam ser tratadas em consonância com a ordem constitucional.
Isso se dá porque, a norma jurídica também deve ser vista como um ato de comunicação entre o Estado e o cidadão, que estabelece os limites do lícito e do ilícito. Por ter a função limitadora, a norma penal não pode presumir tais limites, o legislador não está autorizado pela ordem constitucional a adotar qualquer tipo de limitação que não seja nítida e que se traduza em uma lesão ou perigo de lesão efetivo ao bem jurídico.
Nesse ponto, como os crimes de perigo abstrato prescindem da demonstração de que ocorrerá a afetação do bem jurídico, eles estão em contradição com a estrutura de uma norma criminalizadora, já que ela não pode se desvincular da sua condição de ato de comunicação entre o Estado e o cidadão. Esse ato de comunicação exige uma captação precisa da realidade.
Uma falha ou uma distorção na comunicação ou mesmo uma comunicação parcial não pode legitimar uma norma criminalizadora, pois no Estado Democrático de Direito a norma, como ato de comunicação, só será legitimada quando suas disposições possibilitem a integração de todos os cidadãos como sujeitos de direitos e pessoas livres (TAVARES, 2020. p. 110)[xii].
Para alguns, apenas a descrição da conduta proibida, que prescinde da demonstração de que houve a afetação do bem jurídico, é uma forma suficiente e adequada de comunicação. No entanto, há um posicionamento que admite a incompatibilidade dessas normas com a ordem jurídica democrática e que está pautada na consideração de que as condutas individuais só ingressam no âmbito do ilícito quando promovem uma alteração relevante da realidade empírica.
Não basta a proibição de uma conduta descrita na norma penal, ainda que essa descrição presuma uma situação de perigo para um bem jurídico. Um indivíduo, para incorporar a norma penal em seu mundo da vida, busca em fatores concretos e sensíveis a respostas aos fatos que estão relacionados a sua realidade. Não basta um enunciado normativo, as zonas do lícito e do ilícito também são determinadas pelo contexto no qual as pessoas se movimentam.
Para que exista um processo de comunicação perfeito é preciso que se dê ao cidadão elementos palpáveis e capazes de indicar que a sua conduta é capaz de causar uma lesão ou colocar em perigo um bem jurídico, já que a ordem jurídica em um Estado Democrático de Direito não pode ser convertida em uma entidade puramente abstrata. Esse Estado deve partir da premissa de que a pessoa é o centro da ordem jurídica e o parâmetro essencial para a compreensão, interpretação e aplicação das normas, em especial, a norma penal.
REFERÊNCIAS
ECK, Ulrich. La sociedade del riesgo global. Madrid: Siglo XXI de España Editores, 1999.
BIDASOLO, Mirentxu Corcoy. Delitos de peligro y proteción de bienes jurídicos-penales supraindividuais: nuevas formas de delincuencia y reinteroretacion de tipo penales clássicos. Valencia: Tirant lo blanch, 1999.
BUERGO, Blanca Mendoza. El derecho penal en la sociedade de riesgo. Madrid: Civitas, 2001.
BUSATO, Paulo César. Direito penal e ação significativa: uma análise da função negativa do conceito de ação em Direito Penal a partir da filosofia da linguagem. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
PAREDES CASTAÑON, José Manuel. Los delitos de peligro como técnica de incriminación em el derecho penal económico: bases político criminales, 2001.
PÉREZ, Carlos Martínez-Buján. A concepção significativa de ação: T.S. Vives e sua correspondência sistemática com as concepções teleológico-funcionais do delito. Trad. Paulo César Busato. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2007.
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Aproximação ao direito penal contemporâneo. Trad. Roberto Barbosa Alves. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
TAVARES, Juarez. Fundamentos da teoria do delito. 2. ed. Florianópolis: Tirant lo Blach, 2020.
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