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É possível conciliar a prisão preventiva com a garantia da presunção de inocência?

A prisão é o ápice das penas, visto que é a pena mais severa que o nosso ordenamento jurídico possui. Assim, a segregação cautelar de qualquer indivíduo a título de prisão preventiva (processual) deve ser realizada em conformidade com o que a lei prevê, pois afeta o direito de locomoção, violando, assim, um dos bens jurídicos mais valiosos do ser humano, qual seja, a sua liberdade de ir e vir.

Deve-se ter em mente, portanto, que prisão processual não deve ser tratada como pena, mas sim como um “mal” necessário, só devendo ser aplicada em situações extraordinárias, no escopo de, única e exclusivamente, resguardar o processo para que venha a ter um resultado útil ao final.

O processo penal é uma pena em si mesmo, pois não é possível processar sem punir e tampouco punir sem processar, pois é gerador de estigmatização social e jurídica (etiquetamento) e sofrimento psíquico. [...] (LOPES JR, 2016, p 65).
Que o juízo penal é um mal para quem o sofre e que, por isso, lhe ocasiona um sofrimento, no que está um caráter necessário, já que não suficiente da pena, é uma primeira verdade manifesta. Só se deve acrescentar que em certos casos e pontualmente para certas pessoas, este sofrimento, com frequência de longa duração, é mais que o que possa sê-lo o ocasionado no caso de condenação, pela pena com a mesma determinada; tanto mais se esta é leve, o peso da condenação ou, em geral, do processo a excede: se pudessem, quantas pessoas queriam pagar uma multa ou sofrer a reclusão sem ser condenadas sem sofrer aquela pena.(CARNELUTTI, 2015, p 81).

É inegável, portanto, o sofrimento do ser humano ao ser submetido a uma investigação policial ou denunciado em um processo penal, e mais ainda ao ser condenado judicialmente. Isso porque, mesmo após o cumprimento da pena, o indivíduo continua não deixará de ser rotulado e estigmatizado pela sociedade como “ex- presidiário”.

Em outras palavras, pode-se afirmar que o curso natural do processo penal, por si só, já é desgastante, visto que deixa marcas e danos irreparáveis àqueles que sofrem uma acusação penal, mesmo que ao final venham a ser absolvidos.

A imagem que esses indivíduos sempre vão passar é a de “ex- presidiário”, é a de sujeito que cometeram um crime. Esse rótulo imposto, ainda de forma inconsciente pela sociedade, é, conforme já dito, bastante prejudicial, já que esses indivíduos colocados à margem de qualquer possibilidade de reintegração terminam voltando a delinquir, e isso acaba se tornando um ciclo vicioso.

Nesse diapasão surge o seguinte questionamento: como conciliar a prisão preventiva com a garantia da presunção de inocência? A prisão preventiva viola a constituição?

Consoante a Súmula 9 do STJ, a prisão provisória não ofende o princípio constitucional do estado de inocência (CF, art. 5º, LVII), mesmo porque a própria Constituição admite a prisão provisória nos casos de flagrante (CF, art. 5º, LXI) e crimes inafiançáveis (CF, art. 5º, XLIII). Pode, assim, ser prevista e disciplinada pelo legislador infraconstitucional, sem ofensa à presunção de inocência. (CAPEZ, 2016. p, 367).

É entendimento consolidado tanto na doutrina quanto na jurisprudência que a prisão preventiva (ou qualquer outra medida de natureza cautelar) não viola a presunção de inocência, pois a prisão preventiva possui função cautelar, sendo decretada no escopo de resguardar o processo, não havendo que se falar, portanto, em incompatibilidade entre prisão preventiva e presunção de inocência.

Lopes Jr (2013) assevera que a prisão preventiva deve ser utilizado apenas como último instrumento; em caráter excepcional, tendo em vista o sofrimento e o constrangimento que ela impõe ao indivíduo, que é presumidamente inocente.

[...] Assim, quando ela cumpre sua função instrumental-cautelar, seria tolerada, em nome da proporcionalidade e da excepcionalidade. Mas infelizmente, a prisão cautelar é um instituto que sofreu grande degeneração, a qual dificilmente será remediada por uma simples mudança legislativa. O maior problema é cultural, é a banalização de uma medida que era para ser excepcional. (LOPES JR, 2013, p. 33).

Nessa esteira, Lima (2003) diz que a prisão antes da sentença final condenatória, apesar de ser um paradoxo em relação as garantias fundamentais, ela se faz necessária, em algumas situações, como instrumento necessário ao processo. Contudo, o seu uso irrestrito e indiscriminado, como instrumento de defesa social, sob a alegação de gravidade do delito e periculosidade do agente, a torna banal e ilegítima.

Nota-se que é possível conciliar a prisão preventiva ou qualquer outra medida de natureza cautelar, com a presunção de inocência, desde que a medida de restrição seja decretada com o fim de tutelar, única e exclusivamente, o processo.

Assim, a segregação cautelar do indivíduo pode ser decretada sem que haja violação ao estado de inocência, desde que a prisão seja decretadas com fins processuais, sem que seja feita, portanto, qualquer análise previa acerca da potencial gravidade do suposto delito cometido. Explico.

No caso da prisão preventiva, que é o objeto do nosso estudo, esta deve ser decretada nos ditames do artigo 312 do Código de Processo Penal, ou seja, deve ser decretada para assegurar a aplicação da lei penal, a conveniência da instrução criminal, para garantir a ordem pública e a ordem econômica.

No que tange os fundamentos relacionados a ordem pública e a ordem econômico, possuímos nossas ressalvas, devido à abstração inerente aos referidos conceitos, o que gera a possibilidade de, por exemplo, de se decretar a prisão preventiva em razão da gravidade do delito e da comoção social causada em razão da ocorrência o mesmo.

Em virtude do exposto, não concordamos com a utilização dos referidos argumentos (ordem pública e ordem econômica) para fundamentar o decreto preventivo, pois além de não se aterem a aspectos estritamente processuais, os referidos argumentos são maleáveis, sujeitos a utilizações arbitrais em razão da abstração e imprecisão que lhe são intrínsecas.

Conclui-se, dessa forma, que a prisão preventiva deve ser decretada excepcionalmente, no escopo de tutelar o processo, evitando assim a sua banalização, e que o indivíduo seja tratado como se culpado fosse antes do advento da sentença condenatória final.

Por fim, apenas a título de curiosidade, vale ressaltar que, de acordo com os dados apresentados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em fevereiro de 2017, os presos provisórios, no Brasil, representam 34% do número total de presos, o que nos leva a crer que a prisão cautelar, hodiernamente, vem sendo utilizada de maneira desarrazoada, maculando a sua excepcionalidade.


REFERÊNCIAS

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Disponível em: < Disponível em: <.https://dicionariodoaurelio.com/ >. Acesso em: 10 de Maio de 2017. >. Acesso em: 20 de Maio de 2017.

CARNELUTTI, Francesco. O problema da pena. São Paulo: Pillares, 2015

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 23° ed. São Paulo: Saraiva. 2016.

LIMA, Camila Eltz de. A garantia da ordem pública como fundamento da prisão preventiva: (in) constitucionalidade à luz do garantismo penal. Porto Alegre: Revista de Estudos Criminais. nº 11, 2003.

LOPES JR, Aury. Prisões Cautelares. 4 ed. São Paulo: Saraiva. 2013.

Daniel Lima

Mestrando em Direito Penal e Ciências Criminais. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Advogado.

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