Concursos, doutrina e Advocacia: o que sobrará depois da ‘teoria da graxa’?
No dia 2 de abril de 2017, o concurso para Promotor de Justiça de Minas Gerais exigiu, como se fosse uma brincadeira atrasada – e sem graça – de 1º de abril, que os candidatos soubessem a “teoria da graxa”. Muitos já escreveram sobre esse assunto. Aury Lopes Jr. e Lenio Streck abordaram essa questão das teorias que não possuem relevância e emanam apenas da criatividade fértil e desnecessária de alguns examinadores de concursos públicos.
Aqui, analisarei outra questão, qual seja, o efeito que essa preponderância dos fins concursais gera para a Advocacia Criminal.
O problema está nos examinadores dos concursos públicos, mas acredito que todos têm uma parcela de culpa, ainda que em menor grau. Os examinadores são aqueles que legitimam e tornam necessária essa preparação por meio de teorias ensinadas apenas por professores de determinados cursinhos preparatórios. Ademais, os examinadores fazem com que os concurseiros, que sonham com determinadas carreiras, precisem jogar as regras do jogo.
As faculdades, por sua vez, não querendo perder espaço no mercado, iniciam uma campanha agressiva de marketing em torno de aprovação no exame da OAB e no foco na preparação para concursos públicos.
Alguns professores que não querem ficar fora da docência acabam tendo que se adaptar a esse formato de ensino mastigado e resumido para que não sejam criticados pelos alunos ou pela direção da faculdade.
Muitos alunos encaram a faculdade apenas como um período para se obter o requisito “bacharel em Direito” para determinados concursos, ingressando na faculdade com a ideia de que, após se graduarem, entrarão em algum cursinho preparatório para aprenderem aquilo que a faculdade não lhes ensinou.
No final, os concursos testam apenas a competência para decorar teorias inúteis e partes de ementas, além da capacidade de marcar X. Tudo isto legitimado pelos examinadores dos concursos, pelas faculdades que mercantilizam o ensino e pelos professores que aceitam reduzir a qualidade das aulas em prol de uma vaga na docência. Por fim, os concurseiros, que certamente não concordam com essas avaliações ridículas, são os indivíduos que mais sofrem com essa infeliz realidade. Quantos vocacionados perdemos para esse sistema perverso?
Isto fez com que uma Juíza, aprovada nas primeiras colocações do certame, fosse examinada sobre a composição do Tribunal Constitucional alemão, mas, quando entrou em exercício na Magistratura, frequentemente precisava ser alertada pelos estagiários sobre a necessidade de qualificar as testemunhas, tomar o compromisso para que digam a verdade e informar o réu sobre o direito ao silêncio. Ela sabia mais sobre um Tribunal de outro país do que sobre aquilo que faria todos os dias, dezenas de vezes por dia, até se aposentar. Mas a banca achou que ela marcava X muito bem…
Também tem o caso de um Promotor que, apesar da atribuição exclusiva na área penal, citou uma frase de um autor que desconhecia completamente e, se soubesse dos fortes laços nazistas desse autor, certamente não teria utilizado suas ideias.
O que tudo isso tem a ver com a Advocacia Criminal? Tudo!
O mercado dos livros está cada vez menos crítico e mais descritivo. Os livros apenas reproduzem o que está na lei de forma mais fácil para se entender e decorar. Com a redução das críticas, surgem menos teses defensivas, pois elas decorrem do interesse de inovar, e não da mera reprodução/repetição.
Some-se a isto o fato de que, nas últimas décadas, quase todos os autores de Direito Penal e Processo Penal no Brasil são Promotores de Justiça ou se aposentaram no Ministério Público. Por mais que tentem o afastamento de suas influências, é impossível se afastarem totalmente da posição de acusadores, o que solidifica uma doutrina mais punitivista e menos garantista.
Por derradeiro, ainda há uma jurisprudencialização sem precedentes – perdão pelo trocadilho -, que faz com que os conceitos penais sejam cada vez mais jurisprudenciais e menos legais e doutrinários. Afinal, qual doutrina vai combater a jurisprudencialização? A do Direito resumido? Ou aquela escrita por alguns Promotores, que apenas ajudaria a assistência à acusação? Os Advogados Criminalistas que atuam na defesa não têm com o que combater o fortalecimento da jurisprudência.
Quando perguntamos a um Advogado o motivo pelo qual ele gosta tanto da Advocacia, ouvimos que a liberdade é o fator decisivo. Contudo, quando indagamos o motivo de não produzir doutrina, a resposta é “não tenho tempo”. Contraditório, não?
Há “doutrina” para concursos e muitos livros escritos por e para Promotores, mas o que há para os Advogados?
Se considerarmos a lógica anteriormente descrita, no sentido de que as faculdades focam quase que exclusivamente na preparação para concursos públicos, talvez nem tenhamos mais faculdades para a Advocacia.
A Advocacia Criminal está sofrendo com a falta de doutrina especializada e com o excesso de técnicas concursais (questões objetivas, decoreba de prazos e teorias desnecessárias etc.) nas faculdades.
Tendo mais de um milhão de Advogados, como isto é possível?