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A condenação com base exclusiva na palavra da vítima

A condenação com base exclusiva na palavra da vítima

Diariamente se observa nos corredores e processos dos fóruns criminais a existência de sentenças condenatórias que utilizam como base exclusiva a palavra da vítima. Contudo, será que esses depoimentos, se isolados, constituem elementos de prova capazes de condenar?

A jurisprudência brasileira atualmente concede à palavra da vítima maior valor probatório, em especial nos crimes patrimoniais e nos crimes sexuais, especialmente porque, de regra, esses crimes são praticados às escondidas.

O erro desse entendimento recai justamente ao conceder o poder decisivo através da presunção de veracidade desses depoimentos, resultado da presunção tola de uma inconsciente e inconsequente premissa de que a vítima fala sempre a verdade e não teria porque mentir ou mesmo errar. Ora, o erro é da nossa própria natureza humana.

É preciso sair do mundo das fantasias e deixar de lado a ilusão de que a vítima não possui qualquer interesse no processo ou de que é infalível. Isso, pois, a vítima está diretamente envolvida e contaminada com os fatos, o seu interesse é direto, seja para condenar um inocente – por erro, vingança ou por qualquer razão que seja – ou para absolver um culpado. Pensar diferente é ser ingênuo dentro do processo penal.

A consequência desse endeusamento são os inúmeros casos de condenações injustas baseadas em mentiras, falsas memórias, falsos reconhecimentos (reconhecimentos que desrespeitam as regras previstas no Código de Processo Penal) ou até mesmo erros de boa-fé (LOPES JR., 2018. p. 457).

Por isso, penso que o caminho tem que ser diferente, isto é, a palavra da vítima deveria ter menor valor probatório, de modo que seu valor deve ser condicionada ao conjunto probatório e não o contrário.

Em outras palavras, existe um conjunto probatório harmônico, coerente e capaz de elevar os indícios da autoria de um delito? Se sim, passa a valorar a palavra da vítima. A palavra da vítima é coesa com o resultado anterior? Sim, então se valora devidamente o seu depoimento.

Caso a resposta seja não, então, não se pode fantasiar para tornar o depoimento coerente, como, por exemplo, “já faz bastante tempo entre o depoimento e os fatos, normal não se lembrar direito”, “foi vítima de outros casos, então é normal que confunda”, “embora não tenha reconhecido em juízo pessoalmente, reconheceu por foto há anos na delegacia”, e por ai vai, a cada dia que passa novas sentenças, com novos argumentos para tapar buraco da prova.

Como exemplo prático, o Supremo Tribunal Federal vota atualmente um caso de estupro em que o confronto genético não apontou o denunciado como autor (prova científica), mas que a vítima supostamente reconheceu o acusado como o autor dos fatos (prova falível e sem respeitar as regras do procedimento).

O rapaz foi condenado pelo juízo singular, mantido condenado pelo Tribunal Estadual e está no Supremo para, quem sabe, ter sua inocência declarada.

Outro exemplo, acusado de roubo em datas diversas, na época em que estava sendo monitorado pela tornozeleira eletrônica, as vítimas reconhecem, o relatório do monitoramento não apresenta nenhuma violação e demonstra que na hora e local denunciado o rapaz não estava nos local dos fatos. A prova científica é falível, claro, mas o ser humano não? Não há, no mínimo, a dúvida para absolver?

Ora, se a prova científica nega a autoria do denunciado, como inverter a lógica da prova ao colocar o depoimento da vítima acima, inclusive, da prova científica?

Por fim, é claro que não se pode demonizar a palavra da vítima, tratá-la como descartável, mas tê-la como verdade absoluta, na ausência de elementos de prova e de harmonia com o restante, é um erro ainda maior. É preciso cuidado.


REFERÊNCIAS

LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 15. Ed. São Paulo, Saraiva, 2018.

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