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Uma condenação política

Uma condenação política

Eu já sabia como sempre soube. Em quase 12 anos de Defensoria Pública, quase todos eles na maior parte do tempo atuando na esfera criminal, não demorei nem um pouco para entender o quão injusto é esse Poder.

Há muito digo que não acredito na ‘justiça’ e muitos sabem que afirmo que não podemos nomear esse sistema como um sistema de justiça, mas, sim, como um sistema de injustiça evidente.

Quantas vezes ao longo do exercício da minha atividade profissional, os meus olhos se encheram de lágrimas, o meu coração bateu fortemente e a minha fala embargou de raiva do acinte de determinadas posturas judiciais, comentários proferidos em salas de audiência, e decisões, decisões vazias, decisões moralistas, discriminatórias, preconceituosas, desprovidas de fundamento jurídico, desconformes da lei e violadoras de regras constitucionais.

Ainda que não se possa generalizar, pois todas as Instituições e Poderes não são monolíticos, ou seja, há quem pense e aja de forma diferente, é fato, conforme bem ensina Boaventura de Sousa Santos que o sistema judicial foi criado não para um processo de ruptura, de inovação, mas para um processo de continuidade, de continuidade das desigualdades diríamos.

Não por outra razão o conservadorismo e o elitismo são características latentes do Poder Judiciário, o qual é dominado por uma cultura normativista, técnico-burocrática que vai encontrar raiz na formação profissional, no ensino do direito e na forma de ascensão a referida carreira jurídica.

SANTOS (2011) também nos diz que uma das expressões dessa cultura é o que nomina de sociedade longe, de acordo com ele:

“A sexta manifestação desta cultura normativista técnico-burocrática é ser, em geral, competente a interpretar o direito e incompetente a interpretar a realidade. Ou seja, conhece bem o direito e a sua relação com os autos, mas não conhece a relação dos autos com a realidade. Não sabe espremer os processos até que eles destilem a sociedade, as violações de direitos humanos, as pessoas a sofrerem, as vidas injustiçadas. Como interpreta mal a realidade, o magistrado é presa fácil de ideias dominantes. Aliás, segundo a cultura dominante, o magistrado não deve ter sequer ideias próprias, deve é aplicar a lei. Obviamente que não tendo ideias próprias tem que ter algumas ideias, mesmo que pense que não as tem. São as ideias dominantes que, nas nossas sociedades, tendem a ser as ideias de uma classe política muito pequena e de formadores de opinião, também muito pequena, dada a grande concentração dos meios de comunicação social. E é aí que se cria um senso comum muito restrito a partir do qual se analisa a realidade. Este senso comum é ainda enviesado pela suposta cientificidade do direito que, ao contribuir para a sua despolitização, cria a ficção de uma prática jurídica pura e descomprometida.”

Vejam, cria a ficção de uma prática jurídica pura e que se diz descomprometida, mas que de forma latente desvela a sua politização. Afinal, toda decisão judicial é uma decisão política, pois decisão emanada de um Poder de Estado, não por menos ZAFFARONI (2013) já teria nos dito que todo o preso é um preso político.

Ocorre que essa política que emana das decisões judiciais em grande parte segue permeada por aquelas características já elencadas: o conservadorismo e o elitismo, além é claro do seu conteúdo nitidamente inquisitorial, a base diríamos desse processo. Então, temos um projeto nitidamente orquestrado para a manutenção do status quo, cumprindo a condenação àqueles que se desviam desse percurso.

Por isso, condenar o Lula é condenar o que ele representa enquanto liderança política, projeto político que defende e que implementou no país. Isso está claro quando na decisão se julga a sua pessoa e não os fatos, quando se faz referência a sua pessoa, como se fez, de forma moralista, ainda que se valendo da forma de tratamento Vossa Excelência, o que soa nítida ironia.

Condenar o Lula é condenar um partido político, mas não qualquer partido, um histórico partido de esquerda, enquanto outros mais à direita seguem loteando e saqueando o Brasil ao longo de sua história. Isso é simbólico.

O reconhecimento de direitos nessa esteira afrouxa essa orquestra e coloca em perigo a minha confortável posição, quiçá na sociedade brasileira escancaradamente hierarquizada.

Aliás, a aplicação da lei no Brasil nunca foi igual, inúmeros são os exemplos na história e um deles talvez possa ser a nossa primeira Constituição, a qual embora reconhecendo a liberdade e a igualdade perante lei faz uma ginástica para explicar a conciliação entre esse mandamento e a escravidão que é a base de formação da nossa sociedade e que se perpetua até hoje através de um racismo estrutural e institucionalizado.

Aqui se encaixa a expressão: aos meus amigos tudo, aos meus inimigos a lei!

E independentemente da moral (que é relativa), o fato é que o direito penal e o direito processual penal, quando estudados a luz do ordenamento jurídico então dito vigente, ou seja, aquele conforme a Constituição Federal, encerra o reconhecimento das questões técnico-processuais apontadas pela defesa.

É basilar, não há a possibilidade de um julgamento justo e legal senão observadas a imparcialidade, o devido processo legal, a legalidade e a presunção de inocência.

O processo que enfrentamos no Brasil de relativização e esvaziamento das garantias penais e processuais penais não se inicia agora, mas ganha uma força enorme com o dito processo do mensalão e mais ainda na Lava Jato, chegando Alexandre Morais da Rosa, ainda no ano de 2015, em coluna junto ao Conjur, questionar Como é possível ensinar processo penal depois da operação Lava Jato?

Estranhamente ou não, esses processos espetáculos se dirigem a criminalização da esquerda e são seletivos, tanto quanto o sistema penal o é, mas a grande questão é o que eles desvelam: que estamos vivendo um estado de exceção. Não por menos a criminalização também direcionada à esquerda dos manifestantes e dos movimentos sociais.

De acordo com AGAMBEN (2004),

“No decorrer do século XX, pôde-se assistir a um fenômeno paradoxal que foi bem definido como uma “guerra civil legal” (Schnur, 1983). Tome-se o caso do Estado nazista. Logo que tomou o poder (ou, como talvez se devesse dizer de modo mais exato, mal o poder lhe foi entregue), Hitler promulgou, no dia 28 de fevereiro, o Decreto para a proteção do povo e do Estado, que suspendia os artigos da Constituição de Weimar relativos às liberdades individuais. O decreto nunca foi revogado, de modo que todo o Terceiro Reich pode ser considerado, do ponto de vista jurídico, como um estado de exceção que durou 12 anos. O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos. (...) Uma das características essenciais do estado de exceção – a abolição provisória da distinção entre poder legislativo, executivo e judiciário – mostra, aqui, sua tendência a transformar-se em prática duradoura de governo.”

Assim, a retórica e a linguagem jurídica atuam na tentativa de encobrir o que hoje de forma mais evidente se escancara: que a dita justiça tem lado, tem nome, tem cor, tem orientação sexual, tem credo, tem classe social e orientação política.

E mesmo com toda a minha indignação, que faz com que eu seja empurrada para fora desse sistema por vezes, muitas me sentindo uma completa outsider, outras tachada de rebelde, subversiva, eu continuo acreditando, primeiro, por que estamos num campo de luta, disputando por projetos políticos diversos, segundo, por que eu tenho fé, e é ela que faz com que todos os dias eu lute pela afirmação das liberdades, das garantias e da democracia.

Não desisto por que tenho certeza que cada pessoa tem o poder de produzir pequenas revoluções, as quais juntas terão o condão sim de transformar o mundo. Desistir nunca, resistir sempre. A luta é constante, é diária e me motiva, me dá mais força para berrar por liberdade, por igualdade e por justiça social.

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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