Conduzir ou não conduzir? Eis a violação!
Por Douglas Rodrigues da Silva
Recentemente, em meio a celeuma político-institucional instalada no país, ganhou destaque, ante os olhares ávidos e curiosos da população, o instituto da condução coercitiva, criticada figura processual prevista no artigo 260 do Código de Processo Penal, em sua redação original de 1941.
Segundo a previsão da legislação processual, o acusado, ao não atender o chamado da autoridade que conduz os trabalhos de investigação (seja no intuito de prestar depoimentos, acompanhar reconhecimentos e demais atos da investigação), poderá ser conduzido mediante “vara” – ou melhor dizendo, coercitivamente.
A análise, aqui, impende adiantar, não recairá no caso específico de um ou outro figurão da vida política brasileira. Longe disso. Com efeito, o pequeno estudo aqui proposto visa, sobremaneira, perquirir acerca da legitimidade desse instituto e sua eventual recepção pela Constituição da República de 1988 (também chamada de “Carta Cidadã” – nome hoje olvidado por muitos, mas que representa seu real sentido).
Pois bem.
O Constituinte de 1988, ao escrever o artigo 5º, inciso LV, buscou assegurar a todos, indistintamente o direito à ampla defesa, com todos os seus meios e recursos inerentes, os quais compreendem a defesa técnica, aquela exercida por procurador [advogado] devidamente inscrito na OAB, e a autodefesa, que inclui todos os expedientes que dispõe o próprio acusado/investigado.
A defesa pessoal ou autodefesa, pois, é aquela exercida pelo próprio sujeito passivo da relação processual penal ou da investigação, de forma que pessoalmente resiste à pretensão punitiva estatal. Significa dizer que o próprio indivíduo atua no sentido de defender-se, sem o auxílio de um defensor (LOPES JUNIOR, 2013, p. 237-241). E, como forma de autodefesa, tem-se que ao acusado é assegurado o direito de não se autoincriminar (na parêmia latina: nemo tenetur se detegere), não sendo o mesmo obrigado a contribuir com a atividade acusatória estatal no sentido de apresentar elementos probatórios desfavoráveis ou a dizer algo em seu prejuízo (ressalte-se que a carga probatória, no sentido perseguir a condenação criminal de alguém, recai exclusivamente nos ombros do órgão de acusação).
Essa mesma garantia, a propósito, já foi reconhecida pela doutrina alemã, mesmo que a legislação germânica não a preveja expressamente, deduzindo-a de três direitos constitucionais, sendo eles: i) dignidade humana, como postulado supremo; ii) o direito ao livre desenvolvimento da personalidade; e iii) proibição de afetação do núcleo essencial de um direito [aqui dignidade humana] (BOTTINO, 2009, p. 72)
O que hoje se discute está no limite desse direito constitucional, ou seja, até que ponto o sujeito tem resguardado o direito de não contribuir com a investigação – ponto sobre o qual reside a discussão da legitimidade da condução coercitiva.
Vejamos.
A condução coercitiva, parece-nos, totalmente incompatível com o Processo Penal sob a ótica constitucional. E assim o é justamente em virtude do direito de não autoincriminação, como recurso inerente da ampla defesa, prevista na Constituição da República.
Como afirmado, o sujeito passivo da investigação criminal não tem nenhuma obrigação em contribuir com os trabalhos de instrução preliminar. Aliás, é perfeitamente lícito a ele comparecer ao chamamento da autoridade policial para simplesmente ratificar sua intenção de nada dizer, não sendo possível adotar-se contra ele qualquer medida sancionatória. Se assim é previsto pela Carta Magna, por que imaginar-se que o Estado estaria revestido do direito de retirar o investigado de seu lar, de seu trabalho ou qualquer local correlato a fim de conduzi-lo, dentro de uma viatura policial, a uma delegacia de polícia, sala de aeroporto ou até mesmo num avião da Força Aérea com destino a Curitiba, por exemplo?
Obviamente não há lógica alguma no instituto.
Ademais, é indubitável o caráter estigmatizador do procedimento de condução coercitiva. Em resumo, temos um investigado, sem qualquer acusação formal contra si, sendo levado, ante os olhos atentos da sociedade, dentro de uma viatura policial a uma delegacia policial – onde poderá simplesmente dizer que não tem nada a dizer. Todavia, a sua honra já estará maculada e, mesmo que se consiga uma decisão absolutória ou mesmo um arquivamento dos autos de inquérito, dificilmente se conseguirá restabelecer a imagem de outrora – sobretudo num universo em que operações policiais levam nomes inspirados nos ditames do mercado publicitário e de marketing.
Porém, pode-se perguntar, e os trabalhos de investigação? Não ficariam prejudicados sem a contribuição do acusado?
Bem, só temos a dizer que se um Estado, não obstante seu aparato policial, depender da atuação positiva do investigado para desempenhar seu papel, atesta-se, claramente, a sua falência.
O que não se pode perder de vista é o caráter completamente avesso à Constituição que se reveste o vetusto instituto da condução coercitiva. Tal figura poderia até ser “adequada” [e aqui cabem muitas aspas] no regime originário do CPP de 1941 (Era Vargas, Estado Novo, Ditadura, Estado Policial), mas jamais poderá ser adequada a um regime Democrático de Direito.
É inadmissível que o Estado se valha de um expediente espetaculoso tão somente no intuito de pressionar ou macular a honra do investigado, a fim de dele extrair declarações.
A legislação já assegura aos órgãos de persecução penal um amplo campo de produção probatória, sendo perfeitamente lícito [desde que atendidos todos os requisitos legais – embora reconhecemos que no Brasil é algo raro] até mesmo o uso de interceptações de comunicações telemáticas.
Contudo, a Carta Cidadã não autorizou, e não autoriza, o espetáculo processual e, muito menos, o uso da condução coercitiva como mecanismo de esmagamento de reputações ou meio de pressão.
REFERÊNCIAS
LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
BOTTINO, Thiago. O direito ao silêncio na jurisprudência do STF. São Paulo: Campus Jurídico, 2009.