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Conflito aparente de normas e a vedação ao “bis in idem”


Por Rossana Brum Leques


As regras do concurso aparente de normas são apresentadas pela doutrina e procuram resolver o âmbito de incidência da norma e a adequação típica de certo fato que, aparentemente, possa se enquadrar em mais de um tipo penal. Verifica-se, assim, se será o caso de aplicação simples de uma das normas ou concurso de crimes.

O problema ocorre porque existem descrições fáticas comuns nas normas, como bem ilustra o modelo legal abaixo:

formula

Justamente por isso, são utilizados princípios, critérios de solução do problema, a fim de conferir o correto enquadramento típico de cada caso. De forma resumida, podemos destacar os seguintes critérios:

I. Especialidade: lei especial afasta lei geral;

II. Subsidiariedade: o mesmo bem jurídico é descrito em diferentes graus de gravidade, de modo que a descrição mais grave absorve a mais branda (chamada de “norma de reserva”);

III. Consunção: possui diversas regras. As mais utilizadas são as seguintes:

a) Crime-meio é absorvido pelo crime-fim.

b) Crime progressivo (para cometer um crime é preciso passar por outro). Noção diferente da progressão criminosa, que consiste na reiteração de crimes em escala para o mais grave.

c) Antefato e pós-fato impuníveis. Seriam, na verdade, simples preliminares (antefato) ou complementos (pós-fato) do fato principal. Em relação ao pós-fato impunível, geralmente ocorre com atos que são adequados ao exaurimento do crime consumado, mas que, também estão previstos como autônomos.

d) Resumidamente, deve-se considerar absorvido pela figura principal tudo aquilo que, enquanto ação, era necessário, ou o seu caminho natural.

Portanto, trata-se de uma questão de interpretação, com interesse especial em estabelecer uma solução para evitar o “bis in idem”, ou seja, a dupla imputação/punição de determinado indivíduo.

Nas palavras de Luiz Regis Prado:

Cumpre salientar que a solução do concurso de leis é dada como expressão do princípio ne bis in idem, quando tipos penais concorrentes desvaloram simultaneamente o mesmo fato e a dupla imposição de pena conduz a um injustificável bis in idem. Isso é assim porque, nesse caso, apenas um dos tipos subsumíveis é capaz de captar o total conteúdo do injusto culpável. É bastante a aplicação de apenas um tipo legal de delito, nada mais”. (PRADO, Luiz Regis. Tratado de direito penal brasileiro. Vol. 2. São Paulo: RT, 2014, p. 604).

No mesmo sentido, posiciona-se Rodolfo Tigre Maia:

“A expressão ne bis in idem, quase sempre utilizada em latim, em sua própria acepção semântica já impõe de imediato que se esclareça o que (idem) não deve ser repetido (ne bis). Nessa linha, provisoriamente pode-se antecipar que sua utilização jurídica, por via de regra, é associada à proibição de que um Estado imponha a um indivíduo uma dupla sanção ou um duplo processo (ne bis) em razão da prática de um mesmo crime (idem). No coração mesmo de sua assimilação normativa parece encontrar-se o intuitivo reconhecimento da existência de uma comezinha noção de equidade que torna inaceitável, quando menos por incoerente, que alguém receba mais de uma punição pela mesma infração penal ou que sofra mais de uma vez com as inevitáveis agruras de um processo criminal”. (MAIA, Rodolfo Tigre. O princípio do “ne bis in idem” e a constituição brasileira de 1988. In: Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público da União, n. 16, v. 4, 2005, p. 27).

Observe-se: tais regras são flexíveis, utilizadas pelos tribunais como política criminal, forma de dosar a proporcionalidade da pena. Eis aqui o perigo.

A ausência de unidade nos tribunais, as diferenças entre cada região do país, entre outros fatores, acabam dando ensejo a julgados discrepantes entre si e contra a racionalidade da lei em sua essência.

Embora o ditado popular diga: “Cada juiz, uma sentença”, eu, enquanto advogada e pesquisadora do direito, não consigo me acostumar com isto… Ainda bem!

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Rossana Brum Leques

Advogada (SP) e Professora

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