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Conflito intertemporal de leis: um caso concreto


Por Ruchester Marreiros Barbosa


Na coluna de hoje vou narrar um fato que me deparei ao analisar um inquérito policial na qual me deparei, mas ainda não tinha me pronunciado neste procedimento. Evidentemente irei suprimir os nomes dos envolvidos por razões de reserva da intimidade, no entanto, todos os fatos são reais.

Ao analisá-lo percebi um conflito intertemporal entre a lei 6.368/76 e a lei 11.343/06, mais precisamente entre os artigos 12, §2º, III e 37 da lei 11.343/06.

O inquérito policial tinha sido instaurado para apurar a conduta do descrita do art. 12, §2º, I da lei 6.368/76, por fato ocorrido em setembro de 2005 envolvendo uma cantora de funk em ascensão aqui no Rio de Janeiro.

Na época o delegado de polícia da Xª Delegacia ao se deparar com notícia no jornal de um show musical na qual a cantora, na qual chamaremos de MC’ Cantante, teria composto uma letra de música e a interpretado enaltecendo uma associação criminosa, bem como a atividade desenvolvida pelos “traficantes”, que eram conhecidos e foragidos da justiça, citando seus nomes, a comunidade onde “comandavam” e exerciam suas atividades ilícitas.

Diante deste fato noticiado no jornal, o delegado de polícia, por cognição imediata, propter officio instaurou inquérito pelo art. 12, §2º, I da lei 6.368/76 e art.  287 do Código Penal, na qual não concordei.

Numa leitura açodada, a capitulação inicial catalogaria a conduta da investigada em um crime de tráfico por equiparação, consequentemente, ao confrontarmos com a atual legislação o crime de tráfico estaria no art. 33 da lei 11.343/06, que possui pena máxima de 15 anos e, portanto, a prescrição somente ocorreria em 20 anos, conforme 109, I do CP. E por esta razão, apesar como o fato teria ocorrido em 2005, a prescrição pela pena em abstrato somente ocorreria em 2025, razão pela qual o inquérito estava “indo e voltando” no trâmite eloquente do dia a dia, com requisições pra cá, prá lá, juntada de laudo de exame audiográfico no CD de música, em tese, cantada pela investigada MC’ Cantante, que a toda evidência foi resultado de um trabalho hercúleo dos peritos.

Nesse interim, a lei 6.368/76 foi revogada pela lei 11.343/06.

Teriam as condutas sido revogadas? Teriam aumentado a pena? Quando esta conduta teria se consumado? Poderia ser aplicada a súm 711 do STF e ter piorado a situação jurídica da investigada?

Sabemos que algumas condutas como o tráfico de drogas do art. 12 da lei 6.368/76 fora substituído pelo art. 33 da lei 11.343/06, no entanto pelo princípio da continuidade normativa, certas condutas prosseguem como estavam, no entanto, algumas foram revogadas, operando-se verdadeira abolitio criminis, e outras tiveram suas penas alteradas. Outrossim, a instauração também versa a apuração de conduta descrita no art. 287 do Código Penal, em minha análise não mais sustentável após a verificação dos elementos informativos nos autos.

Impende salientar que a conduta prevista no art. 287 do Código Penal, antes da lei 11.343/06, por força do princípio da especialidade, não se amolda ao caso concreto, mas sim antigo ao art. 12, §2º, III:

“III – contribui de qualquer forma para incentivar ou difundir o uso indevido ou o tráfico ilícito de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica.”

No entanto, à época, quando ainda vigente a lei 6.368/76 a adequação típica pelo delegado à época foi do art. 12, §2º, I:

“I – induz, instiga ou auxilia alguém a usar entorpecente ou substância que determine dependência física ou psíquica;”

Como se observa, ao criminalizar a conduta de cantar músicas que realizam apologia ao uso das drogas ou a criminoso o agente não direciona sua conduta a alguém especificadamente, ao contrário, destina sua conduta com o dolo de causar insegurança à paz pública e não a alguém. Foi esse o propósito do legislador, apesar de não concordar com esta delimitação vaga à um bem jurídico no âmbito penal.

Neste diapasão, na ocasião, o crime que mais se amoldaria ao caso concreto seria o mencionado, e já revogado, art. 12, §2º, III da lei 6.368/76, não obstante a divergência doutrinária que existia à época se a difusão ao uso ou tráfico seria para grupos determinados ou genéricos, o STF ao se posicionar me parece que adotou entendimento de que se trata de uma modalidade de participação no crime independentemente de se conhecer seus autores, portanto genérico, porquanto equiparou a figura do “fogueteiro” daquele disposto revogado ao atual art. 37 da LD:

“1. A conduta do “fogueteiro do tráfico”, antes tipificada no art. 12, § 2º, da Lei 6.368/76, encontra correspondente no art. 37 da Lei que a revogou, a Lei 11.343/06, não cabendo falar em abolitio crimini; (….) 3. A nova Lei de Entorpecentes abandonou a teoria monística, ao tipificar no art. 37, como autônoma, a conduta do colaborador, aludindo ao informante (o “fogueteiro”, sem dúvida, é informante) (….) 4. A revogação da lei penal não implica, necessariamente, descriminalização de condutas. Necessária se faz a observância ao princípio da continuidade normativo-típica, a impor a manutenção de condenações dos que infringiram tipos penais da lei revogada quando há, como in casu, correspondência na lei revogadora. STF. 1ª Turma. HC 106155/RJ, red. p/ o acórdão Min. Luiz Fux, julgado em 4/10/2011.”

Quando o “fogueteiro” é considerado informante a toda evidência não se exige dele que conheça os integrantes do grupo, basta que ele saiba que contribui (eventualmente e sem vínculo associativo) de qualquer forma para incentivar o tráfico. Este dispositivo também era utilizado para criminalizar quem “apitava” na praia, contribuindo de forma genérica para grupo de pessoas de forma difusa, que estivessem fazendo uso de drogas, portanto o art. 12, §2º, III da lei 6.368/76, tecnicamente era genérico e especial ao art. 287 do CP.

No entanto o entendimento majoritário era o de se aplicar a norma mais benéfica por força da razoabilidade, tanto que à época prevaleceu o entendimento de que a conduta deveria ser dirigida “a uma pessoa ou grupo de pessoas”, (JUNQUEIRA e FULLER, 2005, p.150) e (MORAES e SMANIO, 2002, p. 138).

Em sentido oposto, “trata-se de apologia ao uso ou tráfico de drogas, visando a um número indiscriminado de pessoas. Não se aplicam ao caso os arts. 286 e 287 do CP, prevalecendo o princípio da especialidade. É uma fórmula genérica para incriminar a conduta de quem tiver como objetivo o incentivo ou a difusão ao uso ou ao tráfico de entorpecentes.” (THUMS e FILHO, 2005, p. 38 e 39). Ressalte-se que estes autores deixaram bem claro que “não configuram o crime as manifestações consistentes em críticas à punição do usuário, exposição de idéia em livrou ou em música.”, observação na qual me filio. Há quem entenda que o art. 37 da LD se quer apresenta correspondência com a lei anterior. (GOMES et al, 2006, p. 102)

No escólio da professora Cláudia Barros Portocarrero, o art. 37 corresponde ao colaborador eventual (PORTOCARRERO, 2010, p. 471):

“O delito em questão apenas se aplica às hipóteses em que o informante, eventualmente, sem integrar a organização ou associação ou grupo, preste informações ao mesmo.”

Em outras palavras, em cotejo aos elementos informativos, a investigação possui elementos informativos que denotam não ter a investigada praticado o crime de forma individual, mas sim direcionada de forma genérica ao seu público, não restando, em hipótese alguma seu vínculo com o tráfico de drogas, de modo que o art. 37 da lei 11.343/06 não se aplica ao caso de forma alguma, muito menos o art. 35 do mesmo diploma, diante da ausência absoluta de indícios de associação criminosa, por ausência total de “permanência e estabilidade” nos moldes do que já decidiu a 6ª Turma do STJ (HC 139.942-SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 19/11/2012).

Noutro giro, pelas premissas dantes aduzidas, não seria a hipótese prevista no art. 12, §2º, I da lei 6.368/76, que guardaria similitude com o art. 33, §2º de “Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga”.

Não nos deixa mentir a doutrina já mencionada, que este dispositivo se refere a conduta destinada a uma pessoa ou grupo de pessoas determinado e não genericamente.

Neste caso, o incentivo ao uso da droga através da música, após a lei 11.343/06 delimitou definitivamente a genérica menção da legislação anterior, restando para esta forma de agir somente o art. 287, do Código Penal (PORTOCARRERO, 2010, p. 447):

“A conduta daquele que compõe, canta letras de música que incentivam o uso da droga não caracteriza o crime previsto nesse artigo, justamente por se destinar a pessoas indeterminadas, o que não se admite a figura deste §2 em estudo. Conquanto não exista subsunção ao artigo em estudo, a referida conduta, por revelar apologia ao crime, se enquadra no disposto no art. 287 do Código Penal.”

Como foi possível verificar, a conduta da MC’ Cantante, que antes era previsto pela especialidade, no art. 12, §2º, III da lei 6.368/76, atualmente, como se depreende da doutrina e jurisprudência, pelo princípio da continuidade normativa, amolda-se no art. 287 do CP, que prevê detenção “de três a seis meses, ou multa.”

Verifiquei, ainda que o fato em comento ocorreu aproximadamente em setembro de 2005, e pela pena a prescrição pela pretensão punitiva se opera em 3 anos, logo, em setembro de 2008, por força do art. 109, VI do CP, o Estado não poderia mais realizar nenhum ato de investigação, haja vista que da data do fato até os dias atuais já se foram 10 anos e 5 meses, para um crime que prescreveria em 3 anos.

Diante dos fatos, e análise técnico jurídica, encerrei a investigação e relatei o inquérito policial. Não nos parece haver outra alternativa que não seja o arquivamento por requerimento do Ministério Público e acolhimento pelo Juiz, por força da prescrição, e consequente extinção da punibilidade, conforme art. 107, IV do CP.


REFERÊNCIAS

GOMES, Abel Fernandes et al. Nova Lei Antidrogas. Teoria, Crítica e Comentários à Lei 11.343/06. Niterói: Impetus, 2006.

JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Dinuz e FULLER, Paulo Henrique Aranda. Legislação Penal Especial, vol. 1, 2ª Ed., São Paulo: Premier, 2005.

MORAES, Alexandre de e SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legislação Penal Especial, 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2002.

PORTOCARRERO, Cláudia Barros. Leis Penais Especiais para Concursos. Niterói: Impetus, 2010.

THUMS, Gilberto e FILHO, Vilmar Velho Pacheco. Leis Antitóxicos, 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

_Colunistas-Ruchester

Ruchester Barbosa

Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal. Delegado.

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