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A contaminação intencional do vírus HIV e o Direito Penal (Parte 2)

A contaminação intencional do vírus HIV e o Direito Penal (Parte 2)

No artigo anterior, falávamos que a epidemia de AIDS trouxe pânico e insegurança à população mundial no início dos anos 80. Inicialmente, a medicina não sabia o que causava os sintomas relacionados à queda do sistema imunológico dos pacientes e, consequentemente, as doenças oportunistas.

Nos Estados Unidos, chegou-se a relacionar o quadro de sintomas a uma síndrome da deficiência de imunidade de origem desconhecida. Em um curto espaço de tempo, esse quadro clínico foi relacionado aos homossexuais por haver, entre eles, um índice maior de doentes e mortes.

Descrevemos, resumidamente, a evolução da doença através dos tempos. Trouxemos as questões fáticas para o Direito e demonstramos como a jurisprudência resolvia os casos de transmissão dolosa do vírus HIV através dos tempos. Hoje, abordaremos o que foi ventilado nos tribunais pátrios e aplicado nos casos julgados no passado.

PRIMEIROS CASOS DE AIDS NO BRASIL

Na década de 1980, quando do surgimento dos primeiros casos de AIDS no Brasil, praticamente não houveram casos levados aos sistema de justiça criminal. A descoberta de ser portador do vírus era uma sentença de morte; uma morte dolorosamente presumida! Muitos casos de suicídio relacionados à doença ocorreram na época.

Os primeiros casos de contaminação do vírus e mortes pela doença AIDS no Brasil ocorreram em 1982 em São Paulo, todos os pacientes eram adeptos de prática homo/bissexual, tendo sido o Hospital Emílio Ribas a atendê-los. Os pesquisadores ainda não haviam chegado a um consenso sobre o nome para essa doença, que era tratada pela imprensa como ‘Peste Gay’ ou Gay-Related Immune Deficiency (GRID). Ainda naquele ano, casos de AIDS foram relatados em 14 países ao redor do mundo.

Naquele tempo, sequer era possível discutir juridicamente sobre a transmissão intencional do vírus, pois o agente que o transmitia vinha a óbito em aproximadamente 6 meses, extinguindo a punibilidade, na forma do então vigente 108, inciso I, do Dec.-Lei 2848/1940 (hoje art. 107, inciso I, do vigente Código Penal).

Com o surgimento do primeiro medicamento para o tratamento da síndrome, o AZT, o sistema imunológico dos portadores do vírus HIV foi ficando um pouco mais resistentes às infecções oportunistas.

Ademais, as infecções oportunistas, causadas por fungos, passaram a serem controladas com agentes antifúngicos como Secnidazol e Cetoconazol e, consequentemente, os pacientes gozaram de um prolongamento, ainda que mínimo, de sua expectativa de vida.

Com o passar dos anos, ao final da década de 1980, foram surgindo outros medicamentos para tratamento das doenças oportunistas, prologando, ainda mais, a vida dos portadores do vírus. É aí que começam, efetivamente, as discussões a respeito da incidência do Direito Penal aos casos de contaminação intencional do vírus.

CONTAMINAÇÃO INTENCIONAL DO VÍRUS DA HIV

Inicialmente, dada a altíssima mortalidade que a síndrome acarretada pelo HIV causa, a justiça brasileira fala em homicídio doloso tentado ou consumado, a depender do resultado causado pela contaminação. Como os pacientes que era contaminados com o vírus vinham à óbito em 6 meses após o contágio, aqueles que os contaminaram dolosamente eram julgados pelo Tribunal do Júri.

A jurisprudência passou a questionar sobre se aqueles que integravam os grupos de risco (homossexual; bissexuais; usuários de drogas injetáveis; etc.) que, sabidamente, tivessem tido contato com um portador do vírus e que, embora não tendo certeza a respeito de sua própria contaminação e que mantivessem relações sexuais com outras pessoas, poderiam ser julgados por tentativa de homicídio por dolo eventual.

Abrindo um pequeno parênteses, segundo Guilherme de Souza Nucci, em sua obra Código Penal Comentado, 4ª Edição, Revista dos Tribunais, 2003, dolo: a) é a vontade consciente de praticar a conduta típica (visão finalista – é o denominado dolo natural); b) é a vontade consciente de praticar a conduta típica, acompanhada da consciência de que se realiza um ato ilícito (visão causalista – é o denominado dolo normativo); c) é a vontade consciente de praticar a conduta típica, compreendendo o desvalor que a conduta representa (é o denominado dolo axiológico, exposto por Miguel Reale Júnior, Antijuridicidade concreta, p.42).

Características do dolo: a) abrangência: o dolo deve envolver todos os elementos objetivos do tipo, aquilo que Mezger chama de “valoração paralela na esfera do leigo”; b) atualidade: o dolo deve estar presente no momento da ação, não existindo dolo subsequente, nem dolo anterior; c) possibilidade de influenciar o resultado: é indispensável que a vontade do agente seja capaz de produzir o evento típico. Na lição de Welzel,

A vontade impotente não é um dolo relevante de um ponto de vista jurídico penal” (Derecho penal alemán, p. 221-222).

Assim, dolo indireto ou eventual é a vontade do agente dirigida a um resultado determinado, porém vislumbrando a possibilidade de ocorrência de um segundo resultado, não desejado, mas admitido, unido ao primeiro. Por isso, a lei utiliza o termo “assumir o risco de produzi-lo”.

Nesse caso, de situação mais complexa, o agente não quer o segundo resultado diretamente, embora sinta que ele pode se materializar juntamente com aquilo que pretende, o que lhe é indiferente. Em decisão, Felix Fischer:

O dolo eventual, na prática, não é extraído da mente do autor, mas, isto sim, das circunstâncias. Nele, não se exige que o resultado seja aceito como tal, o que seria adequado ao dolo direto, mas que a aceitação se mostre, no plano do possível, provável (STJ, REsp 247263-MG,5.ª T., 05.04.2001, m.v., DJ 20.08.2001, p. 515).

A questão ficou por muito tempo sendo debatida na jurisprudência pátria. O que ocorria, na prática, era que os que fossem condenados pela contaminação intencional a título de infringência do art. 121 combinado com o art. 14, inciso II, do Código Penal, vinham a falecer antes mesmo de dar início ao cumprimento das penas que lhes eram eventualmente impostas, extinguindo-se, assim, por óbvio, a punibilidade.

Expusemos, no artigo anterior, que, no início da epidemia, falava-se que aquele que transm discutiu-se se a transmissão intencional do HIV consubstanciaria o delito do art. 130 do Código Penal que dispõem que:

Art. 130. Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.

§1º - Se é intenção do agente transmitir a moléstia:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

§2º - Somente se procede mediante representação.

Como informamos, a incidência da hipótese legal tipificada foi descartada pela jurisprudência dos tribunais superiores ao argumento de que o HIV não é uma doença venérea pois esse vírus possui outras formas de transmissão que não somente as sexuais.

Com o evoluir da jurisprudência, a transmissão do vírus HIV foi enquadrada na hipótese do art. 131 do Código Penal que reverbera:

Perigo de contágio de moléstia grave
Art. 131. Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

Segundo Cléber Masson:

A AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), doença fatal e incurável, não é moléstia venérea, uma vez que pode ser transmitida por formas diversas da relação sexual e dos atos libidinosos. Se um portador do vírus HIV, consciente da letalidade da moléstia, efetua intencionalmente com terceira pessoa ato libidinoso que transmite a doença, matando-a, responde por homicídio doloso consumado. E, se a vítima não falecer, a ele deve ser imputado o crime de homicídio tentado. Não há falar no crime de perigo de contágio venéreo (CP, art. 130), uma vez que o dolo do agente dirige-se à morte da vítima. É a nossa posição. Para o Supremo Tribunal Federal, contudo, não comete homicídio (consumado ou tentado) o sujeito que, tendo ciência da doença (AIDS) e, deliberadamente, oculta-a de seus parceiros, mantém relações sexuais sem preservativo. A Corte, todavia, limita-se a afastar o crime doloso contra a vida, sem concluir acerca da tipicidade do delito efetivamente cometido (perigo de contágio venéreo ou lesão corporal gravíssima pela enfermidade incurável).

Porém, o que tem prevalecido na jurisprudência dos tribunais superiores é o rechaço ao crime doloso contra a vida.  O STJ já decidiu nesse sentido: HC 9.378/RS, rel. Min. Hamilton Carvalhido, 6.ª Turma, j. 18.10.1999 e o STF no HC 98.712/SP, rel. Min. Marco Aurélio, 1.a Turma, j. 05.10.2010, noticiado no Informativo 603.

Tudo dependerá da circunstância fática.

Rodrigo Murad do Prado

Doutorando em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires. Mestre em Direito. Criminólogo. Defensor Público.

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