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A contaminação intencional do vírus HIV e o Direito Penal

A contaminação intencional do vírus HIV e o Direito Penal

A epidemia de AIDS trouxe pânico e insegurança à população mundial no início dos anos 80. Inicialmente, a medicina não sabia o que causava os sintomas relacionados à queda do sistema imunológico dos pacientes e, consequentemente, as doenças oportunistas.

Nos EUA, chegou-se a relacionar o quadro de sintomas a uma síndrome da deficiência de imunidade de origem desconhecida. Em um curto espaço de tempo, esse quadro clínico foi relacionado aos homossexuais por haver, entre eles, um índice maior de doentes e mortes.

A AIDS passou a ser uma doença comportamental e diretamente relacionada aos homossexuais do sexo masculino devido a alta incidência de casos. A cidade de São Francisco nos EUA foi a que mais registrou casos de mortes relacionadas ao quadro clínico.

Socialmente, a doença foi apelidada de câncer GAY. Essa pecha decorre do fato de que, uma das doenças oportunistas relacionadas ao quadro clínico e mais aparentes devido às chagas que surgiam na pele dos que dela padecem, era o sarcoma de kaposi.

Naquele tempo, houve várias tentativas de se encontrar a causa da doença, sendo que, uma delas, partindo da ideia de que, se havia um grupo social que adoecia mais, provavelmente essa doença era transmitida por um vírus.

Chegou-se a buscar um denominado PACIENTE ZERO:  Gaëtan Dugas. Essa teoria foi apresentada com destaque no livro de Randy Shilts, And the Band Played On, que documentou o início da AIDS nos Estados Unidos. Shilts retrata Gaëtan Dugas como tendo um comportamento quase sociopático, por supostamente infectar intencionalmente, ou pelo menos de forma imprudente, outras pessoas com o vírus HIV.

Dugas foi descrito como sendo um homem charmoso, belo e atlético que tinha, segundo sua própria estimativa, em média, centenas de parceiros sexuais por ano. Ele alegou ter tido mais de 2.500 parceiros sexuais na América do Norte desde que se tornou sexualmente ativo em 1972.

Sendo um comissário de bordo, Dugas foi capaz de percorrer o globo, a um custo baixo, através de epicentros do início da epidemia do HIV, como Londres e Paris na Europa, e Los Angeles, Nova York e São Francisco nos Estados Unidos. Sendo diagnosticado com o Sarcoma de Kaposi em junho de 1980 e depois de ser avisado que isso poderia ser causado e transmitida por um vírus sexualmente transmissível, Dugas se recusou a parar de ter relações sexuais desprotegidas, alegando que ele poderia fazer o que ele queria com seu corpo.

Ele teria informado alguns dos seus parceiros de sexo, só depois das relações sexuais, que tinha o “câncer gay” e que, talvez, seu parceiro estava infectado também. Essa teoria padece de críticas pois que, segundo pesquisas de DNA do vírus, outros casos já existiam antes do paciente ZERO.

Com o passar do tempo, a medicina logrou êxito em isolar o vírus HIV que, acertadamente, causava a AIDS.

A AIDS disseminou-se para o mundo.

A doença não tinha um tratamento eficaz que evitasse as mortes e, por isso, era entendida pelos que eram diagnosticados como um sentença de morte.

O direito não fechou os olhos para essa situação. Os casos de contaminação intencional era recorrentes e, assim, surgiam as discussões sobre a incidência do direito penal nessas situações.

No início, o direito penal brasileiro a entendia como uma hipótese de homicídio doloso (dolo eventual) quando o agente, sabendo-se ou supondo-se portador do vírus HIV, mantivesse relações sexuais desprotegidas com a vítima no intuito de transmitir a doença.

Atualmente, os portadores do vírus HIV possuem no Brasil o acesso gratuito à TARV (tratamento anti-retroviral) e a exames acurados para fins de controle da carga viral e combate às doenças oportunistas.

Tais medidas são aliadas às políticas de combate e erradicação de determinadas doenças em que, pacientes portadores do vírus ou doentes de aids, possuem prioridade na vacinação preventiva e tratamento de determinadas doenças, em razão de sua especial condição consistente na debilidade imunológica.

Cumpre ressaltar que há diferença entre o portador do vírus HIV e o doente de AIDS. O primeiro, é portador do vírus HIV e, diante dos exames de controle da carga viral e de células de defesa (CD4), tal paciente possui uma carga viral baixa ou até indetectável pelos exames e um número de células de defesa do tipo 4 normais segundo os padrões. Já o paciente com desenvolvimento da doença aids, este, evidentemente, conta com uma carga viral elevada e um número reduzido de células de defesa, apto a desenvolver doenças oportunistas devido a sua baixa imunológica.

No Brasil, desde 1996, há uma política pública de amparo, tratamento e auxílio aos portadores do vírus (Lei 9.313/96).

Os portadores do vírus HIV têm direito de que essa condição não seja revelada quando são submetidos a exames e outros procedimentos.

Com o surgimento dos medicamentos antirretrovirais e o avanço no tratamento de infecções oportunistas, a medicina evoluiu ao ponto de controlar o avanço da doença.

Em 1996, surgiu o denominado coquetel anti-AIDS que, nada mais era do que uma combinação de medicamentos que controlavam a multiplicação do vírus HIV no organismo humano.

O paciente que usasse esse coquetel passava a uma condição de quase não ter vírus HIV circulante na corrente sanguínea, a ponto dos exames de sangue mais exímios sequer detectassem a presença do vírus no paciente.

Assim, os infectados pelo vírus passaram a gozar de um condição clínica estável e, consequentemente, de uma qualidade de vida equivalente a uma pessoa não portadora do vírus.

A medicina evoluiu a passos largos em relação ao direito. Aqui, se justifica a célebre frase: enquanto a medicina sobe de elevador, o direito vai de escadas!

Nesse cenário, discutiu-se se a transmissão intencional do HIV consubstanciaria o delito do art. 130 do Código Penal que dispõem que:

Art. 130 - Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.

§1º - Se é intenção do agente transmitir a moléstia:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

§2º - Somente se procede mediante representação.

A incidência da hipótese legal tipificada foi descartada pela jurisprudência dos tribunais superiores ao argumento de que o HIV não é uma doença venérea pois esse vírus possui outras formas de transmissão que não somente as sexuais.

O que tem prevalecido é que a transmissão intencional do HIV poderá caracterizar o delito do art. 131 (perigo de contágio de moléstia grave);  129, §2º, inciso II (lesão corporal qualificada pela transmissão de enfermidade incurável) ou, nos casos em que a vítima já é debilitada, art. 121, tentado ou consumado. Tudo dependerá da circunstância fática.

Rodrigo Murad do Prado

Doutorando em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires. Mestre em Direito. Criminólogo. Defensor Público.

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