“Contrabando famélico”? O estado de necessidade no delito aduaneiro
Por Thathyana Weinfurter Assad
O Brasil passa por uma grave crise econômica, durante a qual muitos já perderam seus empregos e outros tantos receiam entrar para o rol dos desempregados. Imaginemos, por hipótese, nesse contexto, a situação de um pai de família, viúvo, responsável por manter seus três filhos – duas crianças e outro adolescente. Este homem, já aos seus 65 anos de idade, recebe a triste notícia de que, após 20 anos de trabalho na mesma empresa, agora “seus serviços não são mais necessários, considerando a urgente redução de gastos”.
A notícia lhe pega de surpresa. Sim, pois mesmo no período de crise, mesmo com o medo de ser “o próximo”, o brasileiro tem a esperança de que, em sua porta, o desemprego, quem sabe, não baterá. Mas, na dele, bateu. E foi como um arrombamento: da porta, da vida, da esperança. Ele não ganhava muito. O valor era pouco mais que o salário mínimo. Mal dava para pagar as contas do mês: ora pagava a da água, ora a da luz. Do mercado, apenas o absolutamente necessário.
Aquele senhor, na noite do fatídico dia, sozinho em seu quarto, chora. Pensa em seus filhos. Lembra da falecida esposa. Num momento saudosista, recorda de como ela que falava as palavras certas para cada ocasião e, assim, tenta imaginar o que ela lhe diria agora. O que ela, em sua sabedoria impar, aconselharia?
Seus filhos o chamam: “pai, o senhor não vem jantar? ”
Jantar. A palavra lhe arrepia. Hoje, a comida estava na mesa. Para o mês, ainda teria. E depois? Conseguiria um emprego a tempo? Enxuga as lágrimas e vai, com a costumeira atenção, juntar-se aos filhos para a ceia. O silêncio. Apenas o silêncio no ambiente cheio de amor.
Já no dia seguinte, este pai, munido de seu currículo, de sua melhor roupa e com seu único par de sapatos ainda apresentável, sai em busca de emprego. Caminha horas a fio. Vai nas agências, bate nas portas, solicita entrevistas, apela ao “faço qualquer coisa, aprendo rápido”, “começo hoje mesmo, se preciso”, dentre outras expressões, típicas de quem, realmente, quer trabalhar, de quem precisa do emprego. Mas as respostas são as mesmas: ora “desculpe-me, estamos em contenção de gastos”, ora “não estamos contratando”, ou o famoso “entraremos em contato”.
Por vezes, depara-se com aqueles olhares que diziam mais que palavras: a idade daquele senhor estava sendo considerada. Pensamentos como “ele já não é tão ágil quanto outros jovens que procuram os mesmos empregos”. Infelizmente, existe esta mentalidade arraigada em alguns cantos por aí: em vez de valorizar a experiência, respeitar o idoso como ele deveria ser respeitado, o mundo de redes sociais e do “tudo célere” quer tudo urgente. Valoriza quem pode fazer mais rápido. Afinal, “tempo é dinheiro”.
O senhor repete as tentativas de encontrar emprego durante um mês. Dois. Três. Quatro. Já não consegue pagar as contas de água, luz. Telefone não tem mais. As solas do sapato já rasgaram de tanto caminhar pelas ruas, procurando emprego. Uma prima distante que lhe ajudou nos dois primeiros meses não deu mais notícias. Simplesmente “sumiu”.
Todas as outras portas se fecham. Os filhos começam a reclamar de fome. E ele entra em desespero. Até que chega um jovem e lhe diz: “vou te ajudar”. Aquela voz era como uma luz no fim do túnel. Ele precisava de ajuda, urgentemente. E se coloca a ouvir.
O sujeito lhe diz que, para aquele dia mesmo, precisava de alguém para transportar algumas caixas de cigarro do Paraguai ao Brasil (era cigarro brasileiro destinado a exportação, de reinserção proibida no país). Algumas horas após, o pai, desesperado, faz a travessia da Ponte da Amizade, dirigindo um caminhão (cheio) com a tal “carga”.
No entanto, ao passar pela fronteira, um policial federal ordena que pare o veículo. Constata o contrabando e o senhor é preso em flagrante delito.
A questão que se coloca é: caberia, no caso hipotético acima mencionado, a justificante do estado de necessidade, retirando, pois, o elemento da antijuridicidade do crime?
Fazendo uma analogia ao que a doutrina denomina de “furto famélico”, poderíamos pensar num “contrabando famélico”? Teoricamente, nossa legislação penal diz que sim, desde que preenchidos os requisitos.
O artigo 24, do Código Penal, estabelece que: “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não o provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.”
No nosso exemplo, o senhor estaria abarcado pela causa justificante?
Vejamos alguns precedentes sobre o estado de necessidade no contrabando. Do Tribunal Regional Federal da 4ª Região:
DIREITO PENAL. DELITO DE CONTRABANDO. ARTIGO 334, § 1º “B” DO CP. CIGARRO. PRINCÍPIO DA INSIGNFICÂNCIA. NÃO APLICAÇÃO. ESTADO DE NECESSIDADE. DELITO CONTRA AS TELECOMUNICAÇÕES. ART. 70 DA LEI Nº 4.117/62. AUTORIA. DOSIMETRIA. (…) 4. A exclusão do crime em razão do estado de necessidade é reservada a situações excepcionalíssimas, não bastando para a sua caracterização a situação de desemprego e de dificuldades financeiras. (…). (TRF4, ACR 5005726-92.2013.404.7006, OITAVA TURMA, Relator p/ Acórdão LEANDRO PAULSEN, juntado aos autos em 22/04/2016). (g.n.)
Do Tribunal Regional Federal da 1ª Região:
PENAL. PROCESSUAL PENAL. ART. 334, § 1º, “d”, DO CP. CONTRABANDO/DESCAMINHO. ENDEREÇO INCORRETO EM JUÍZO. STF. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 595 DO CPP. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. ESTADO DE NECESSIDADE. NÃO CONFIGURADOS. DOSIMETRIA REFORMADA. SUBSTITUIÇÃO DA PENA INAPLICÁVEL. (…) V – Para a configuração do estado de necessidade, imprescindível a adequação da situação do agente ao descrito no art. 24 do CP. A mera existência de despesas com familiares e dependentes não o caracteriza, notadamente, ante a ausência de provas da total incapacidade de provê-las de outro modo. (…) (ACR 0009082-81.2005.4.01.3600 / MT, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL CÂNDIDO RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, e-DJF1 p.200 de 04/12/2009). (g.n.)
A possibilidade, na teoria, existe. Na prática, a situação é mais complexa, como se percebe das decisões judiciais sobre o tema.
Mas quando poderemos aplicar a justificante? O que é uma situação excepcional? Certo é que a mera alegação de desemprego não é suficiente. Mas o que seria? E, ainda, como fica a questão do ônus da prova das causas justificantes no sistema processual penal acusatório? Seria uma carga atribuída, realmente, ao réu? Juntaria ele, aos autos, o sapato com solas rasgadas? Ou, quem sabe, uma ecografia dos estômagos vazios de seus filhos? O que, de fato, exige-se num caso como esse? A teoria e a realidade estão em consonância?
O caso do senhor, talvez, possa nos servir de parâmetro. Imaginemos a teoria e a prática ligadas por uma ponte e façamos a pergunta: o que há, de fato, do outro lado?