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O controle do comércio de armas e a prevenção dos crimes contra a humanidade

O controle do comércio de armas e a prevenção dos crimes contra a humanidade

Em coluna anterior (leia AQUI), tratei da necessidade da construção de um saber criminológico sobre os massacres que, em consequência, sirva para forjar medidas extrapenais que previnam a ocorrência desses fenômenos.

Nesse ponto, a relação entre a desregulamentação do comércio internacional de armas e a extensão dos crimes contra a humanidade é um dos fatores que merece estudo mais aprofundado.

Em relatório do Subcomitê das Nações Unidas para Promoção e Proteção dos Direitos Humanos, publicado em 2006 e intitulado “Prevenção de violações a direitos humanos cometidas com armas pequenas e leves”, concluiu-se que a maioria dos crimes de homicídio no mundo foi perpetrada com armas de fogo.

De acordo com a Anistia Internacional, no relatório “Fatos assassinos: o impacto do comércio irresponsável de armas de fogo nas vidas humanas, nos direitos e no desenvolvimento sustentável”, publicado em 2010, quase 60% das violações de direitos humanos documentadas pela organização foram cometidas com armas pequenas (revólver, metralhadoras e rifles, por exemplo) e amas leves (como mísseis, granadas, minas e morteiros).

O Instituto para Estudos Estratégicos, em seu “Levantamento sobre conflitos armados” (2015), indica que, em 2014, foram mortas 180 mil pessoas em 42 conflitos armados ativos ao redor do mundo. Em 2008, em 63 conflitos ativos ao redor do mundo, foram mortas 56 mil pessoas.

Somando o número de vítimas dos conflitos ativos em 2008, 2010, 2012 e 2014, chega-se à cifra de 395 mil pessoas mortas, o que é um dado alarmante diante do dever jurídico imposto por tratados à comunidade internacional de proteção da paz e segurança da humanidade.

O comércio global de armas é estimado em 8.5 bilhões de dólares anuais (sem contar o mercado ilegal), de acordo com a organização Global Justice.

Embora seja um mercado imenso, pouco se tem feito no sentido de reforçar a sua regulação com vistas a impedir que armas e munições inundem regiões política e socialmente instáveis do planeta, especialmente porque os conflitos armados majoritariamente estão localizados em países pobres e com baixo desenvolvimento social.

Infelizmente, interesses econômicos do mercado mundial de armas podem explicar a reticência da comunidade internacional em implementar medidas efetivas para impedir que as armas cheguem até as mãos daqueles que estão conduzindo massacres ao redor do globo.

O triste cenário retratado pelos estudos referidos indica que o desregulado comércio de armas para regiões instáveis necessita ser enfrentado de maneira séria, pois, embora não seja a causa do conflito, potencializa os danos aos direitos humanos.

No âmbito das Nações Unidas, algumas iniciativas têm sido tomadas com o fim de impedir que o comércio desenfreado de armas torne os conflitos mais avassaladores na sua capacidade de destruição de vidas humanas.

Diante da escalada de violência, o Conselho de Segurança da ONU, com base no artigo VII da Carta das Nações Unidas, pode editar resoluções impondo embargo à venda, exportação e importação de armas para países envolvidos em conflitos internos e internacionais (o embargo pode envolver tanto forças de segurança a serviço do Estado violador dos direitos humanos, como organizações não-estatais), como fez nos casos da Líbia (Resolução 1970/2011), Yemen (Resolução 2216/2015) e Somália e Eritreia (Resolução 2317/2016).

Ocorre que o Conselho de Segurança apenas edita embargos de armas caso não haja veto de um dos cinco membros com assento permanente (Estados Unidos da América, Reino Unido, França, China e Rússia), os quais amiúde se veem envoltos em interesses geopolíticos que podem comprometer o cumprimento do dever imposto pelo Direito Internacional de proteger as vítimas do conflito.

Ademais, não há na prática qualquer sanção a quem descumpra o embargo imposto.

Embora seja dever dos Estados e indivíduos cumprirem com os embargos de armas impostos pela ONU, o descumprimento torna-se comum, notadamente porque muitos Estados não têm mecanismos internos de controle das armas fabricadas e de sua transferência, além de não terem legislação nacional prevendo sanções àqueles que insistirem em violar o embargo.

No âmbito do direito penal internacional, o Estatuto de Roma (que criou o Tribunal Penal Internacional) permite a responsabilidade individual de toda pessoa que, por qualquer meio, incluindo a transferência de armas, prestar assistência ao perpetrador dos crimes contra os direitos humanos (artigo 25.3.c).

Todavia, ainda que haja a responsabilização individual, dificilmente se poderá impedir a transferência de armas por outros atores que insistam em desrespeitar a proibição legal.

Com o fim de dar uma maior efetividade à proibição de transferência de armas, a comunidade internacional adotou o Tratado sobre o Comércio de Armas, ratificado por mais de 80 países (o Brasil assinou o tratado, mas ainda não o ratificou).

O tratado busca regular o comércio internacional de armas convencionais, desde armas pequenas até tanques de guerra, permitindo a responsabilização de quem transfira armas em desconformidade com as regras estipuladas no documento.

No artigo 6º, o tratado proíbe os Estados-partes de transferirem armas e munições para países atingidos por embargos impostos pela ONU ou quando tiverem informação de que as armas possam a ser utilizadas no cometimento de crimes contra a humanidade.

O artigo 7º obriga os Estado a levar em conta informações que apontem o risco de que as armas transferidas possam vir a ser usadas no cometimento de violações ao Direito Internacional Humanitário e aos direitos humanos ou em atos que comprometam a paz e a segurança da humanidade.

O artigo 14 obriga os Estados a implementarem medidas no plano interno para dar efetividade ao tratado, como mudança legislativa e a criação de mecanismos de fiscalização e controle da origem e destino das armas.

O Tratado sobre o Comércio de Armas não proíbe o emprego de armas que sejam por sua natureza mais lesivas, mas amplia a regulação sobre a transferência de armas convencionais a fim de evitar que possam a ser utilizadas para o cometimento de crimes contra a humanidade.

Outras convenções proíbem armas que causem lesões supérfluas ou intenso sofrimento aos combatentes, ou que não permitem distinguir entre civis e combatentes no campo de batalha.

São exemplos a Convenção sobre a Proibição de Armas Bacteriológicas de 1972, que proíbe o desenvolvimento, a produção, a estocagem, a aquisição, a conservação e a transferência de armas bacteriológicas; a Convenção sobre Armas Químicas de 1993, que proscreve o uso e produção de armas químicas; a Convenção de Ottawa de 1997, que proíbe o uso, armazenamento, produção e transferência de minas antipessoais; e a Convenção de Oslo de 2010, que visa a proibição da fabricação, comercialização e uso das bombas cluster.

Para além da proibição do fabrico e emprego de certas categorias de armas que tem alto poder destrutivo, o controle da transferência de armas é apontado por especialistas em segurança internacional como um dos fatores mais urgentes para reduzir a escala de lesividade dos crimes que colocam em risco a paz e a segurança da humanidade.

Dificultar o acesso às armas por parte de grupos paraestatais e pelas forças de segurança de Estados falidos pode ser uma das medidas preventivas mais eficazes para evitar, ao menos, que a magnitude dos massacres seja cada vez mais alarmante.


REFERÊNCIAS

MISOL, Bia. Weapons and war crimes: the complicity of arms suppliers. In: HUMAN RIGHTS WATCH. World Report 2004: human rights and armed conflict, Washington: Human Rights Watch, 2004.

WOOD, Brian. Strengthening compliance with UN arms embargoes: key challenges for monitoring and verification. In: Amnesty International. Londres, março/2006.

WOOD, Brian. ABDUL-RAHIM, Rasha. Nascimento e coração do Tratado sobre o Comércio de Armas. In: Revista Internacional de Direitos Humanos. São Paulo, v.12, n.22, 2015.

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