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Controle social no sistema prisional: reprodução e legitimação da ordem hegemônica

Por Luana Rambo Assis e Maiquel Wermuth

Refletir acerca do Direito Penal brasileiro bem como do papel que ele desempenha na nossa sociedade é uma tarefa que exige antes de tudo a percepção de que o controle social exercido pelo Direito Penal nada mais é do que uma estratégia de legitimação e reprodução dos valores consagrados e preservados pela ideologia dominante.

Mannheim (1971) ao analisar o controle social explica que ele é “o conjunto de métodos pelos quais a sociedade influencia o comportamento humano, tendo em vista manter determinada ordem”. Logo, é possível afirmar que, por controle social, entende-se o poder de determinar os padrões de conduta a serem aceitos e disseminados socialmente.

A sociedade hodierna necessita de seres humanos produtivos e consumidores, aptos a produzir e contribuir com o processo de acumulação de riquezas que é o fator basilar desta estrutura de poder. Nesse sentido, Bauman (2005) explica que não há espaços para seres inservíveis e improdutivos do ponto de vista do capital. Os dejetos humanos – também denominados “consumidores falhos” – não possuem, nessa lógica, os requisitos considerados “normais” e valorados pela ordem hegemônica.

A prisão, neste contexto, serve como “depósito de lixo humano”, ou seja, lugar no qual deverão ser postos todos os segmentos inconvenientes e improdutivos. A sociedade é regida por um conjunto de normas e regras nas quais são estipuladas que tipo de comportamento cada ser humano deve realizar. Aqueles que, porventura, fogem do padrão normativo devem ser removidos do contexto social, de preferência para longe da alçada da elite dominante. O Direito Penal, utilizando-se da pena privativa de liberdade, estabelece uma espécie de controle social no momento em que segrega e condiciona nos muros da prisão os dejetos da sociedade.

Muñoz Conde (2005) explica que o Direito Penal é a superestrutura repressiva de uma determinada estrutura econômica e de um determinado sistema de controle social pensado para a defesa da estrutura. Ou seja, o Direito Penal enquanto mecanismo de controle social serve como aparelho ideológico e conservador no momento em que impõe um conjunto de normas jurídicas, com a finalidade única de atender e reproduzir os valores e princípios fundamentais da sociedade capitalista neoliberal.

Frente ao exposto, Frade (2008) menciona que, no Brasil, o controle social sobre o comportamento do indivíduo atende aos ditames do poder hegemônico vigente, pois é dirigido ao pobre, ao sujeito de baixa escolaridade, transformando a construção do Direito em uma real tendência de controle, propagando a exclusão em detrimento da inclusão, atuando sobre manifestações externas, longe de englobar suas causas, fazendo da própria lei uma ferramenta de manutenção dos interesses dos poderosos. Portanto, nesse sentido, o controle social exercido pelo Direito Penal nada mais é do que uma forma de legitimar a dominação.

Tendo como parâmetro as reflexões e análises abordadas no decorrer do presente texto, pode-se aferir que o Direito Penal enquanto sistema de controle adota um conjunto de procedimentos no intuito de penalizar e criminalizar determinados segmentos que já se encontram vulnerabilizados e fragilizados pelo contexto social, econômico, político e cultural. Portanto, a idéia de Direito Penal igualitário não passa de uma grande falácia. Basta um rápido olhar sobre o código penal brasileiro que esta afirmação se concretiza. Desta forma, indaga-se porque o crime de furto recebe maior alarde social e jurídico do que a sonegação de tributos? Quem são os sonegadores? Qual a influência política e social desses sujeitos? Atrelado ao exposto Streck (2009) menciona que o importante é saber as razões pelas quais admitimos um Direito Penal que trata o furto qualificado de forma mais grave que a sonegação de tributos ou lavagem de dinheiro. Com certeza, as razões disso tudo nós já conhecemos.

Roberto DaMatta (1997) em um de seus escritos tece uma diferenciação entre pessoas e indivíduos que no estudo em voga nos auxilia a compreender algumas visões sobre o fenômeno do controle social imposto pelo Direito Penal. As pessoas são os cidadãos merecedores de respeito, admiração, solidariedade, ponderação e gentileza, afinal, são seres que sabem se portar em uma sociedade consumista e hierarquizada. Já os indivíduos são os consumidores falhos, os carecedores de poder aquisitivo, os sem influência política, ou seja, os segmentos redundantes que não acrescentam em nada, pelo contrário dificultam o progresso social e econômico. O que fazer com essa massa de seres humanos inservíveis?

É possível responder à interrogação afirmando que é contra os “indivíduos” – leia-se os consumidores falhos da sociedade brasileira – que o sistema penal se volta, de forma a manter incólumes os interesses das “pessoas” que ocupam espaços privilegiados de poder.

Por meio do modelo de Direito Penal se estrutura no Brasil não se busca a proteção dos cidadãos e dos seus direitos fundamentais em face da atuação punitiva estatal, tampouco a prevenção à prática de crimes – conforme preconizam os discursos clássicos de legitimação do jus puniendi do Estado. Busca-se, sim, a dominação e a opressão exercidas precipuamente contra as camadas economicamente desfavorecidas da sociedade, inclusive por meio de medidas de inocuização daqueles que são escolhidos para representarem a “personificação do mal”, o que viabiliza a afirmação de que, no Brasil,

os esgualepados são duplamente atingidos: por um lado, por não terem acesso aos direitos sociais, encontram-se constantemente numa luta pela sobrevivência, o que muitas vezes leva ao cometimento de delitos, especialmente contra o patrimônio; por outro, porque, não possuindo qualquer capacidade de articulação frente ao sistema, ao cometerem delitos, são vítimas fáceis da repressão estatal, que deles se vale para justificar sua imprescindibilidade à sociedade. (COPETTI, 2000, p. 63).

Enquanto perdurar um modelo econômico pautado no lucro e na acumulação de riquezas, enormes contingentes humanos terão suas vidas em risco para que os interesses de um grupo elitizado permaneçam invioláveis. Enfim, a exploração sobre os pobres é um fator necessário para que o processo de acumulação de riqueza continue ocorrendo e o Direito Penal enquanto mecanismo de controle social serve neste sentido para administrar e estipular qual comportamento cada ser humano deve dispor para viver com dignidade em uma sociedade marcada pela busca desenfreada por poder e acúmulo de bens e riquezas.

Referências

 BAUMAN, Zigmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

COPETTI, André. Direito Penal e Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito Penal e Controle Social. Trad. Cintia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

DAMATTA, Roberto. Carnavais malandros e heróis. Para uma Sociologia do dilema brasileiro: 6 Ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

FRADE Laura. Quem Mandamos para a Prisão? Visões do Parlamento Brasileiro sobre a Criminalidade. Brasília: Liber Livro, 2008.

MANNHEIM, K. Sociologia Sistemática. Uma introdução ao estudo da sociologia. 2. ed. São Paulo. Pioneira, 1971.

STRECK, Lenio Luiz. Direito Penal e Controle Social: de como historicamente criminalizamos a pobreza em terrae brasilis In 20 anos de Constituição: os direitos humanos entre a política e a norma. São Leopoldo: Oikos, 2009.

WERMUTH. Maiquel Ângelo Dezordi. Medo e Direito Penal: reflexos da expansão punitiva na realidade brasileira. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2011.


Luana Rambo Assis. Assistente Social. Graduada URI São Luiz Gonzaga. Mestranda em Direitos Humanos UNIJUI. Bolsista Integral da CAPES.

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth. Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor do Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ) e do Curso de Graduação em Direito da UNISINOS.


Conceptual photography Misha Gordin

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