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Corrupção eleitoral: uma análise do art. 299, do Código Eleitoral (Parte 2)

Na última coluna, especificamos alguns aspectos do crime de corrupção eleitoral, tipificado na regra do art. 299, do Código Eleitoral e que abarca as condutas de “dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita.”

Na coluna de hoje, seguimos com a análise desse crime, em particular abordando aspectos relativos à consumação, tentativa e exclusão do crime.

E deve-se iniciar a coluna de hoje rememorando uma ideia central exposta na semana passada, segundo a qual o crime de corrupção eleitoral, nas modalidades dar, oferecer ou promoter, exige que os eleitores sejam individualizados ou individualizáveis. Portanto, estão excluídas da abrangência do tipo penal eventuais acordos e negociatas não dirigidos aos eleitores individualizados, mas envolvendo apoio político e divisão de poder entre candidaturas e/ou candidatos (nesse sentido, cf.: TSE – HC 3.160, Rel. Min. Luciana Christina Guimarães Lóssio, DJE 3.4.2014)

Em igual sentido, não configura o crime de corrupção eleitoral – ainda quando individualizado o sujeito passivo – a promessa de benefícios ofertada a eleitor que sabidamente votaria no candidato, pois nesse caso não há que se falar em violação da liberdade de voto.

Considera-se, portanto, atípica a conduta de candidato que prometeu vantagens a correligionários políticos, pois nesse caso, não se estaria violando a liberdade individual de voto, na medida em que se pressupõe que os apoiadores políticos de uma candidatura votarão no(s) candidato(s) apoiado(s).

Por outro lado, o crime de corrupção eleitoral se consuma quando preenchidos os seguintes requisitos: (a) restar demonstrado que o corruptor ativo deu, prometeu ou ofereceu vantagem e/ou que o corruptor passivo solicitou ou recebeu vantagem econômica de qualquer natureza; (b) que a vantagem esteja vinculada, expressa ou implicitamente, à obtenção de voto ou abstenção; (c) que a vantagem ofertada/prometida/entregue ou solicitada/recebida se destine ou provenha de eleitor com potencial de voto; (d) que as condições fáticas evidenciem que a vantagem tem potencialidade de influir na liberdade de voto e; (e) que os eleitores sejam identificados/identificáveis.

Na casuística, esses requisitos restaram preenchidos, e consumada a corrupção eleitoral, nas seguintes hipóteses:

(a) Realização de bingo com distribuição gratuita de bens e discurso do candidato com pedido de voto: “1. O crime de corrupção eleitoral ativa (art. 299 do CE) consuma-se com a promessa, doação ou oferecimento de bem, dinheiro ou qualquer outra vantagem com o propósito de obter voto ou conseguir abstenção. 2. No caso, o candidato a prefeito realizou aproximadamente doze bingos em diversos bairros do Município de Pedro Canário, distribuindo gratuitamente as cartelas e premiando os contemplados com bicicletas, televisões e aparelhos de DVD. 3. Ficou comprovado nas instâncias ordinárias que os eventos foram realizados pelo recorrente com o dolo específico de obter votos. No caso, essa intenção ficou ainda mais evidente por ter o recorrente discursado durante os bingos, fazendo referência direta à candidatura e pedindo votos aos presentes. 4. Recurso especial desprovido.” (TSE – REsp 445.480, Rel. Min. Fátima Nancy Andrighi, DJE 19.8.2011)

(b) Promessa de realização de obras, mediante pedido de voto, a grupo determinado de pessoas: “Recurso especial. Agravo regimental. Art. 299 do Código Eleitoral. Corrupção eleitoral. Promessa de realização de obras. Pedido de votos. Caráter não genérico. Grupo de pessoas determinadas e/ou determináveis. Reuniões. Abordagem direta. Conduta típica. Condenação. Reexame dos fatos da causa. Impossibilidade. Súmula 279 do STF. Dissídio jurisprudencial não demonstrado. Recurso a que se nega provimento. Não cabe, na cognição do recurso especial, reexame dos fatos em que se baseou o acórdão impugnado.” (TSE – AgRg em REsp 25.991, Rel.  Min. Joaquim Benedito Barbosa Gomes, DJ 11.9.2008)

Outra questão de importância dogmática central em relação aos crimes de corrupção eleitoral diz com a possibilidade ou não de se punir o ilícito na modalidade tentada. Necessário analisar cada uma das condutas previstas de forma alternativa no tipo penal.

No crime de corrupção ativa, os verbos nucleares do tipo são dar, prometer e oferecer. Na corrupção passiva, os verbos são solicitar e receber. Na jurisprudência, tem-se afirmado genericamente que o crime de corrupção eleitoral, em qualquer modalidade e qualquer que seja o verbo nuclear, é crime formal, ou ainda que é crime de mera conduta.

A posição não pode ser aceita sem ressalvas. Em que pese se reconhecer que o crime de corrupção eleitoral, nas modalidades prometer ou oferecer (ativa) e solicitar (passiva), são crimes formais, a mesma conclusão não se aplica quando a conduta praticada consistir nos verbos dar e receber.

É que os crimes formais não exigem, para a sua consumação, qualquer alteração do mundo exterior e, nas hipóteses de corrupção eleitoral praticadas nas modalidades dar (ativa) e receber (passiva), há conduta externa passível de apreensão. Nestas duas hipóteses, cuida-se de crime de mera conduta (ou simples atividade), nos quais a regra prevê a conduta exterior mas não exige a ocorrência de resultado – no caso, a vantagem eleitoral consubstanciada no voto ou na abstenção –, tal qual os crimes formais, para que ocorra a consumação. A adoção dessa concepção implica em alguns efeitos.

Primeiramente, no que diz com a corrupção ativa, a promessa e a oferta da vantagem pelo voto ou abstenção independem de aceitação do eleitor para que o crime esteja consumado.

Em segundo lugar, na corrupção passiva, a solicitação da vantagem em troca do voto ou abstenção independe da aceitação do candidato (ou a algum de seus representantes), ou mesmo na entrega da vantagem, para a sua consumação.

Em terceiro lugar, trata-se de mero exaurimento da conduta: (a) na corrupção ativa, o recebimento da vantagem pelo eleitor e; (b) na corrupção passiva, a entrega da vantagem pelo candidato ou seu representante.

Em quarto lugar, a corrupção ativa, mediante a promessa e/ou oferta, bem como a corrupção passiva, mediante solicitação, não admitem a forma tentada e independem de aceitação para restarem consumadas.

Evidentemente, tanto a promessa ou oferta aceitas – na corrupção ativa –, como a solicitação acolhida – na corrupção passiva – implicam no reconhecimento de ambos os crimes (corrupção ativa e passiva), mas isso não significa que a não aceitação exclui o crime praticado pelo sujeito ativo do verbo nuclear do tipo penal.

Por outro lado, quando a corrupção ativa é praticada através das condutas dar (ativa) ou receber (passiva), a situação é um pouco diversa.

Como a conduta dar, em que pese se tratar de crime de simples atividade, é plurissubsistente, possível cogitar a tentativa, desde que não seja precedida de promessa ou oferta de vantagem. Igualmente, a conduta receber, por ser crime plurissubsistente, admite tentativa, desde que não seja precedida da solicitação da vantagem. Um exemplo ilustra a possibilidade de corrupção eleitoral na modalidade tentada:

Corrupção ativa na modalidade “dar“: candidato ‘A’, sendo investigado através de acompanhamento velado pela polícia investigativa e, aproximando-se de alguns eleitores, estaciona seu veículo, abre o porta-malas e retira alguns eletrodomésticos, com a evidente intenção de entregá-los aos candidatos em troca de votos, porém a entrega não ocorre em face da atuação dos policiais que estavam em campana.

Não se nega que a hipótese é de raridade ímpar, a começar pelo fato de que, na prática, o recebimento de vantagem pelo eleitor, na corrupção passiva, e a entrega de vantagem pelo candidato (ou terceiro), na corrupção ativa, são via de regra precedidas da solicitação ou da oferta/promessa, respectivamente, o que afastariam a tentativa. Mas não se pode descartar que, na pluralidade e infinidade de fatos da vida, a hipótese de tentativa seja descartada ex ante.

Outro ponto de importância central na discussão a respeito da corrupção eleitoral reside no fato de que, em decorrência da absurda desigualdade de oportunidades e da distribuição de renda extremamente díspar resultado do nosso modelo neoliberal, muitas das vezes o sujeito passivo da corrupção ativa e/ou sujeito ativo da corrupção passiva são eleitores miseráveis, paupérrimos, que não possuem a mínima consciência da importância do voto e, muitas das vezes, veem nas eleições uma oportunidade de suprirem necessidades das mais básicas que um ser humano pode cogitar (alimentação, saúde, segurança, saneamento básico etc), alienando seu voto a troco de benefícios materiais.

Nesses casos, a jurisprudência tem, acertadamente, ou afastado a tipicidade material da conduta pela insignificância, ou excluído a culpabilidade pelo estado de necessidade exculpante, solução essa que parece a mais acertada:

CORRUPÇÃO ELEITORAL PASSIVA. Beneficiários de cestas básicas. Pessoas simples, com dificuldades de promover a sua própria subsistência. Eleitores procurados em suas residências. Estado de necessidade. Arquivamento do inquérito em relação a estes. (TRE/PR – PROC. 35, Rel. Nilson Mizuta, DJ 24.8.2001)

Com a coluna de hoje, encerra-se um ciclo de questões a respeito do processo penal eleitoral e dos crimes eleitorais. Como os leitores devem saber, e inclusive como noticiado no canal, em breve será lançado livro de minha autoria a respeito do processo penal eleitoral e dos crimes eleitorais, em que outras questões serão abordadas! Espero que o gostinho dessas colunas que escrevi possam ter atraído a atenção do leitor para a temática.

Bruno Milanez

Doutor e Mestre em Direito Processual Penal. Professor. Advogado.

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