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Corrupção: vale tudo para combatê-la?

Por Marcelo Crespo

Ontem foi o Dia Internacional Contra a Corrupção, o que já seria um bom motivo para escrever sobre o combate a esse grave mal que assola nossa sociedade. No entanto, a indecência no trato do dinheiro público e a estrondosa repercussão dos escândalos recentes, de proporções inéditas e ainda imprecisas, igualmente justificam estas linhas. Mais do que isso, o extremo cansaço da sociedade (que está esgotada com a criminalidade e sua respectiva impunidade) aliado ao ímpeto de combater este grave mal (tornando-o, ao menos momentaneamente, o principal inimigo da sociedade) e, ainda, o recente status profissional e acadêmico quanto às discussões sobre integridade corporativa e compliance forçam-nos a tecer algumas considerações com a finalidade de que reflitamos um pouco sobre que caminhos desejamos tomar.

Não à toa já havíamos concitado todos à reflexão com a publicação do “Necessárias reflexões ao endurecimento penal”, publicado precisamente em 10 de junho deste ano, onde expusemos que o tão pleiteado endurecimento penal remete-nos a antigas discussões e a falácias repetidas desde o Absolutismo. Desde aquela época se busca maior eficiência no combate à criminalidade, o que é altamente desejável. O problema é que em vez de buscar a eficiência, muitos enveredam pelo perigoso lado da busca da eficácia, ou seja, a punição do criminoso a qualquer preço, ainda que em detrimento de direitos e garantias fundamentais. Este é o erro. Um grave erro.

Pois bem. Voltando ao contexto narrado no primeiro parágrafo, com o embalo da angústia presente em toda a sociedade o Ministério Público Federal lançou a campanha “10 medidas contra a corrupção”, buscando alterações legislativas para tornar o Brasil um país “mais justo, com menos corrupção e menos impunidade”. As medidas podem ser observadas neste link. Quanto a isso é imprescindível fazer um (muito óbvio, mas oportuno) comentário: somos todos contra a corrupção, sendo certo que apenas os corruptos e corruptores não a repudiam. Ocorre que as propostas estão sendo veiculadas como se fossem um pacote único e cujo conteúdo seria apto a fazer cessar a corrupção no país, inclusive com a campanha percorrendo todo o país no intuito de angariar assinaturas que possibilitem a propositura de projeto de lei de iniciativa popular. Como dito, o caráter social e ético da campanha é inquestionável. As propostas, no entanto, não o são e devem ser debatidas com grande cuidado e profundidade.

Por mais que as medidas propostas tenham a boa intenção do louvável combate à este câncer que é a corrupção, tecnicamente consideradas representam retrocesso do sistema penal e processual penal. O problema, portanto, é como se pretende combater a corrupção,  correndo-se o risco de, mais uma vez, aplicarmos a teoria do sofá.[1]

Se o momento é oportuno para discutirmos o combate à corrupção não podemos perder a oportunidade de debater propostas de vanguarda, libertas do velho método de recrudescimento penal como se fosse o supremo salvador da pátria. Registre-se que o intuito destas linhas não é o de desqualificar o combate à corrupção e tampouco o Ministério Público. Muito ao contrário, é o de auxiliar de alguma forma que o debate seja mais intenso e que as propostas sejam mais do que repetições de fórmulas antigas e que não deram resultado. Afinal, não há dúvidas de que a corrupção destrói o país, impedindo seu regular desenvolvimento. O inimigo é comum, mas a forma de combate é questionada.

Questiona-se, por exemplo a “realização de testes de integridade”, isto é, a “simulação de situações, sem o conhecimento do agente público ou empregado, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer crimes contra a Administração Pública”, então se está partindo da “presunção de desonestidade”. Crítica: trata-se da punição para a vontade do agente, algo absolutamente incompatível com o sistema penal, que além da intenção só pode punir a realização de conduta. O teste seria uma espécie de crime impossível na medida em que haveria um flagrante preparado, assunto até mesmo sumulado. Vide a Súmula nº 145 do Supremo tribunal Federal: “não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”, ou seja, “não há crime quando o fato é preparado mediante provocação ou induzimento, direto ou por concurso, de autoridade, que o faz para fim de aprontar ou arranjar o flagrante” (STF, RTJ, 98/136).

Questiona-se, ademais, as tais regras de accountability, isto é, o estabelecimento de marco de duração razoável do processo (três anos para a primeira instância e um ano para cada instância superior), o que, é louvável sob o prisma da razoável duração do processo, mas que não pode ser simplesmente concretizado em prejuízo, por exemplo, da defesa, por exemplo pela supressão de recursos ou afunilamento dos prazos tornando-os exíguos demais para a complexidade de certos atos.

Isso para mencionar apenas parte das medidas, já que a extensão do texto semanal não permite muitas outras linhas.  Mas elas serão redigidas e apresentadas nos textos futuros, inclusive no da semana que vem. O importante é registrar que todos somos contra a corrupção, mas isso não pode se transformar em um mantra de que os fins justificam os meios.

Afinal, a ninguém se autoriza atropelar as normas constitucionais, ainda que com a melhor das intenções.

Que sigam os debates, com as devidas reflexões.


[1] Teoria do sofá: o cônjuge que surpreende seu consorte cometendo adultério no sofá da sua sala, para resolver a situação, troca o sofá e se dá por satisfeito. Isto é, é a busca da solução do problema por meio de medidas que não focam no real problema, mas no entorno, quase sempre aplicada com o argumento de que é preciso fazer algo rapidamente para dar uma resposta ao fato.

_Colunistas-MarceloCrespo

Marcelo Crespo

Advogado (SP) e Professor

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