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Técnicas jurídico-penais de prevenção à corrupção: whistleblowing

Técnicas Jurídico-Penais de Prevenção à Corrupção: Whistleblowing

1. Introdução

A Operação Lava Jato possibilitou que setores do Ministério Público Federal, em verdadeira campanha publicitária e midiática, alavancassem debate popular e legislativo sobre o que se convencionou denominar de “10 Medidas Anticorrupção“, que muito embora fosse projeto de iniciativa popular, aportou na Câmara dos Deputados através do Projeto de Lei nº 4.850/16, de iniciativa dos Deputados Federais Mendes Thame, Fernando Fracischini e João Campos.

Na Câmara, as medidas foram analisadas por Comissão Especial, que submeteu à votação parlamentar parecer relatado pelo Deputado Onyx Lorenzoni. No parecer, apresentou-se substitutivo, tendo sido suprimidos alguns pontos e incorporados outros ao projeto original.

Relativamente às inovações contidas no substitutivo, incluiu-se para votação parlamentar a Medida 11, com a finalidade de introduzir no ordenamento jurídico brasileiro a figura do whistleblower ou reportante.

A votação parlamentar acabou por desfigurar o substitutivo apresentado pela Comissão Especial, na medida em que a extragrande maioria das propostas de modificação legislativa foi rechaçada – inclusive a introdução no ordenamento positivo do reportante -, além da aprovação de uma emenda parlamentar sobre o crime de abuso de autoridade.

Ainda assim, não se pode negar que, na atualidade, diversos países contém em seus ordenamentos previsões relativas à figura do reportante, sendo que o objetivo do presente ensaio consiste em analisar a prática do whistleblowing na experiência do direito comparado, cotejando-a com as diversas propostas de alteração da legislação pátria para a inserção dessa figura em nosso ordenamento jurídico.

2. Conceito e Origens do Whistleblowing

A expressão whistleblowing (whistle = apito; blow = sopro) é utilizada para fazer referência ao cidadão que, ao tomar conhecimento de uma ilegalidade – como regra praticada em um contexto empresarial ou corporativo – informa o descumprimento da lei às autoridades competentes, em troca de proteções legais, para que estas possam investigar, punir e prevenir ilícitos penais e extrapenais.

Parte-se da premissa segundo a qual, na modernidade, o Estado não possui estrutura suficiente para fiscalizar, investigar e prevenir os diversos ilícitos decorrentes da complexidade havida nas relações sociais, assumindo-se a necessidade de que, em algum limite, os próprios indivíduos devem tomar para si parcela desse dever investigativo e preventivo.

Nesse contexto, a figura do reportante (whistleblower) surge nos países de tradição jurídica anglo saxã – mais especificamente nos EUA -, vinculado inicialmente a proteção de empregados do setor privado que denunciavam práticas ilícitas nos setores de saúde, segurança pública e direitos trabalhistas.

A concepção é ampliada para o mercado de capitais com a edição do Securities and Exchange Act (1934), que cria a Comissão de Títulos e Valores Mobiliários (Securities and Exchange Comission – SEC), com a finalidade de fiscalizar – a partir de uma perspectiva externa à corporação (oversight) – o mercado financeiro e prevenir fraudes fiscais[1].

Com a insuficiência das investigações levadas a cabo por órgãos externos, inaugura-se uma nova forma de investigação e prevenção de ilícitos praticados em contexto corporativo, com a edição em âmbito federal do Sarbanes-Oxley Act (2002), que possibilita fiscalizações internas de fraudes fiscais (undersight), a partir dos próprios funcionários e colaboradores das empresas, que podem atuar como reportantes em troca de incentivos e proteções legais[2].

O procedimento investigativo[3] realizado através da atividade do reportante se inicia com a informação particular prestada à SEC, que promove uma análise do conteúdo reportado, o qual poderá gerar investigação e processo administrativo ou judicial.

Se ao final do processo for aplicada sanção pecuniária, promove-se uma análise da efetividade das informações prestadas pelo reportante para o deslinde do caso, para efeitos de premiação, que pode variar de 15% a 30% em relação ao montante recuperado pelos cofres públicos[4].

Esse sistema de investigação e prevenção a ilícitos, que opera em paralelo e conjuntamente aos sistemas estatais existentes, não se restringe atualmente apenas a fraudes fiscais ou ocorridas no mercado de capitais.

Com efeito, pode-se mencionar a existência de mecanismo similar no campo tributário, consoante regra federal que regulamenta a atuação do fisco estadunidense (Internal Revenue Service – IRS)[5] e prevê benefícios a reportantes de ilícitos tributários:

Se o agente proceder com qualquer ação administrativa ou judicial descrita na subseção anterior [detecção de sonegação e outras fraudes tributárias] baseado em informação trazidas por um cidadão, esse cidadão deve, segundo o parágrafo segundo, receber como prêmio no mínimo 15 por cento porém não mais do que 30 por cento do produto arrecadado (incluindo penalidades, juros, correções ao imposto e montantes adicionais) resultantes da ação (incluindo quaisquer ações correlatas) ou de qualquer ajuste em resposta a essa ação. A definição da quantia desse prêmio pela secretaria de reportantes (Whistleblower Office) dependerá da extensão da contribuição individual para essa ação.”[6] (U.S. CodeTitle 26Subtitle F. Chapter 78. Subchapter B. § 7623, b.1)

Além de uma crescente discussão e ampliação dos setores nos quais as práticas de whistleblowing são admitidas, também se evidencia evolução no que diz respeito aos meios legais de proteção do reportante.

Nesse contexto, o Federal Whistleblower Protection Act (1989) – modificado pelo Whistleblower Protection Enhancement Act (2012) -, contém importantes medidas destinadas a evitar a retaliação de funcionários públicos que optem por reportar ilícitos envolvendo a administração pública[7].

E uma análise do cenário jurídico mundial evidencia que, nas últimas décadas, a prática do whistleblowing tem sido difundida para diversos países da  Europa, Ásia e América, servindo como instrumento de investigação e prevenção na esfera criminal, inclusive em relação ao crime de corrupção[8].

E a difusão do whistleblowing no cenário transnacional se reflete em tratados internacionais que conferem legitimidade a essa prática, como se pode verificar do art. III.1 e III.8 da Convenção Interamericana Contra a Corrupção, ratificada no Brasil por força do Decreto 4.410/2002:

"Artigo III - Medidas preventivas

Para os fins estabelecidos no artigo II desta Convenção, os Estados Partes convêm em considerar a aplicabilidade de medidas, em seus próprios sistemas institucionais destinadas a criar, manter e fortalecer:

1. Normas de conduta para o desempenho correto, honrado e adequado das funções públicas. Estas normas deverão ter por finalidade prevenir conflitos de interesses, assegurar a guarda e uso adequado dos recursos confiados aos funcionários públicos no desempenho de suas funções e estabelecer medidas e sistemas para exigir dos funcionários públicos que informem as autoridades competentes dos atos de corrupção nas funções públicas de que tenham conhecimento. Tais medidas ajudarão a preservar a confiança na integridade dos funcionários públicos e na gestão pública.

(...)

8. Sistemas para proteger funcionários públicos e cidadãos particulares que denunciarem de boa-fé atos de corrupção, inclusive a proteção de sua identidade, sem prejuízo da Constituição do Estado e dos princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico interno." - g.n. -

O Brasil ainda ratificou outros documentos e acordos internacionais direta ou indiretamente relacionados ao tema, como a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida) e a Convenção de Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, isso sem descurar da participação na reunião da Cúpula do G20 em 2010, na qual se firmou a alta prioridade no combate à corrupção[9].

Não são desconhecidos os dilemas éticos levantados em todo o mundo sobre da utilização dessa prática[10], porém a partir do momento em que há uma pulverização do instituto do whistleblowing no âmbito do direito interno de vários países, bem como a sua previsão em tratados e convenções internacionais, não se pode fechar os olhos para essa realidade, sendo extremamente necessário um debate público sobre a temática, notadamente pela existência de alguns Projetos de Lei tramitando em nosso Parlamento, com a finalidade de internalizar a figura do reportante em nosso ordenamento jurídico positivo.

Na próxima coluna, abordaremos alguns aspectos da legislação estadunidense sobre a prática dos reportes, com ênfase no Whistleblower Protection Act e no Sarbanex Oxley Act.


NOTAS

[1] WESTMAN, Daniel P. The Significance of the Sarbanes-Oxley Whistleblower Provisions. The Labor Lawyer. v. 21, n. 2 (Fall. 2005), p. 141.

[2] Idem, ibidem, p. 141-142: “(…) Sarbanes-Oxley garante que indivíduos em nível operacional, que estão intimamente envolvidos nos negócios da companhia, tenham a faculdade de informar terceiros alheios à empresa quando virem fraudes financeiras.” Trad. de: “(…) Sarbanes-Oxley ensures that individuals at the operational level who are intimately involved in a company’s business have the ability to inform outsiders when they see financial fraud.”

[3] Disponível AQUI. Acesso em 26 out.2016.

[4] HATCHER, Amy Conway; GRIGGS, Linda; KLEIN, Benjamin. How whistleblowing may pay under the U.S. Dodd-Frank Act: implications and best practices for multinational companies. In: DEBBIO, Alessandra Del; MAEDA, Bruno Carneiro; AYRES, Carlos Henrique da Silva (Coords.). Temas de anticorrupção & compliance. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. p. 255: “Para ser considerado para um prêmio, o reportante deve voluntariamente subsidiar a SEC com informações originais que conduzam à aplicação da lei com sucesso pela SEC, por corte federal ou através de procedimento administrativo em que a SEC obtenha ressarcimento totalizando mais de um milhão de dólares.” [Trad. de: “To be considered for an award, the whistleblower must voluntarily provide the SEC with original information that leads to the successful enforcement by the SEC or a federal court or administrative action in which the SEC obtains monetary sanctions totaling more than $1 million.”]

[5] Alguns detalhes sobre a proteção oferecida aos reportantes e a atuação do IRS nesses casos pode ser consultada em: ROCHA, Márcio Antônio. A participação da sociedade civil na luta contra a corrupção e a fraude: uma visão do sistema jurídico americano focada nos instrumentos da ação judicial qui tam action e dos programas de whistleblower. Revista de Doutrina do TRF4, Porto Alegre, n.65, abr. 2015.

[6] Trad. de: “If the Secretary proceeds with any administrative or judicial action described in subsection (a) based on information brought to the Secretary’s attention by an individual, such individual shall, subject to paragraph (2), receive as an award at least 15 percent but not more than 30 percent of the collected proceeds (including penalties, interest, additions to tax, and additional amounts) resulting from the action (including any related actions) or from any settlement in response to such action. The determination of the amount of such award by the Whistleblower Office shall depend upon the extent to which the individual substantially contributed to such action.”

[7] OLIVEIRA, Juliana Magalhães Fernandes. A urgência de uma legislação Whistleblowing no Brasil. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, 2015, p. 9: “Referida legislação prevê interessantes medidas antirretaliação, para os casos em que se mova uma ação contra o denunciante, como a inversão do ônus da prova e o direito de o servidor público obter honorários e custas decorrentes do litígio. Ademais, resguarda-se o agente informante da demissão sem justa causa, até mesmo mediante reintegração ao posto de trabalho ocupado, com indenização, entre outras formas de proteção contra a perseguição. Todas essas medidas servem de estímulo à realização de denúncias.”

[8] Sobre as diversas experiências do uso da whistleblowing como instrumento de prevenção à corrupção, cf.: SCHULTZ, David. HARUTYUNYAN, Khachik. Combating corruption: The development of whistleblowing laws in the United States, Europe, and Armenia. International Comparative Jurisprudence. v. 1, I. 1 (dec. 2005), p. 87-97; DYCK, Alexander; MORSE, Adair; ZINGALES, Luigi. Who Blows the Whistle on corporate Fraud? The Journal of Finance. v. 65, n. 6 (dec. 2010), p. 2213-2253; GAULT, David Arellano; MEDINA, Alejandra; RODRÍGUEZ, Roberto. Instrumentar una política de informantes internos ‘(whistleblowers)’: mecanismo viable en México para atacar la corrupción? Foro Internacional. v. 52, n. 1 (enero-marzo, 2012), p. 56 e ss.

[9] Cf.: G20 Anti-Corruption Action Plan – Protection of Whistleblowers Study on Whistleblower Protection Frameworks, Compendium of Best Practices and Guiding Principles for Legislation: “At the Seoul Summit in November 2010, G20 Leaders identified the protection of whistleblowers as one of the high priority areas in their global anticorruption agenda. Recognizing the importance of effective whistleblower protection laws, Leaders, in point 7 of the G20 Anti-Corruption Action Plan, called on G20 countries to lead by: To protect from discriminatory and retaliatory actions whistleblowers who report in good faith suspected acts of corruption, G-20 countries will enact and implement whistleblower protection rules by the end of 2012. To that end, building upon the existing work of organisations such as the OECD and the World Bank, G-20 experts will study and summarise existing whistleblower protection legislation and enforcement mechanisms, and propose best practices on whistleblower protection legislation.”

[10] Sobre dilemas éticos nas práticas whistleblowing, cf.: GAULT, D. A.; MEDINA, A.; RODRÍGUEZ, R. Instrumentar … op. cit., p. 39-40; DELMAS, Candice. The Ethics of Government Whistleblowing. Social Theory and Practice. v. 41, n. 1 (January, 2015), p. 77-105.

Bruno Milanez

Doutor e Mestre em Direito Processual Penal. Professor. Advogado.

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