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COVID-19 e Insider Trading: o caso Richard Burr nos EUA

COVID-19 e Insider Trading: o caso Richard Burr nos EUA

Por Daniel Lima, Fernando Rezende Linhares e José Muniz Neto

É bem verdade que o momento atual no mundo é bastante crítico. Nesse contexto, com o passar dos dias, vemos e escutamos diversos impactos proporcionados pelo surto do novo coronavírus. Os efeitos psicológicos ocasionados pela quarentena forçada, o fechamento compulsório do comércio e o Circuite Breaker das bolsas de valores são resultados desta pandemia.

Ulrich Beck sustentou que a economia neste século foi impregnada de incerteza na sociedade de risco em que se vive atualmente. Ela, a economia, que antes era vista como algo “certo e predeterminado passa a ser fluido[a]”, uma vez que diversos fatores são capazes de influenciar uma viragem da ordem econômica, por exemplo, as questões ambientais, sanitárias, além da própria politização da economia, que introduziu os acordos político-econômicos como base da economia mundial, tornando o sistema financeiro mais instável, subordinado aos anseios dos atores econômicos. Compreende-se, então, que “[…] riscos e incertezas são um elemento constitutivo ‘seminatural’ da atuação econômica” (BECK, 2011: 315-316).

Aliado a isso, em meio a esses acontecimentos, a Covid-19 gera efeitos também no âmbito do direito. Dentre eles, pode-se perceber sua imediata relação com o crime de uso de informação privilegiada no mercado financeiro.

Nos remeteremos a análise técnica de um caso que ocorreu no último dia 20 de março de 2020, nos Estados Unidos, no qual quatro senadores norte-americanos estão sendo acusados de uso de informação privilegiada (crime de insider trading) por venderem ações no mercado financeiro pouco antes da epidemia de coronavírus atingir os Estados Unidos. Um deles, o republicano Richard Mauze Burr, integrava um grupo especial para tratar da emergência da Covid-19, recebendo, portanto, informações sigilosas do governo sobre a matéria.

O presidente do Comitê de Inteligência do Senado, Richard Burr, vendeu entre US$ 628.000 (R$ 3 milhões) e US$ 1,7 milhão (R$ 8,5 milhões) em ações em 13 de fevereiro, através de 33 transações separadas, depois de oferecer garantias públicas de que o governo estava pronto para combater o vírus, de acordo com o grupo de jornalismo investigativo ProPublica. O grupo especial que Burr participava recebia atualizações diárias sobre o surto, tendo conhecimento sobre quando e qual a extensão de seus danos à economia de seu país.

Duas semanas após a venda de ações, o republicano da Carolina do Norte disse em um almoço na sede do governo que o coronavírus era muito mais agressivo em sua transmissão “do que qualquer coisa que vimos na história recente”, de acordo com uma gravação obtida pela National Public Radio.

Os comentários foram anteriores à venda massiva na bolsa de Wall Street.

Burr divulgou um comunicado nesta sexta-feira (20 de março de 2020) dizendo que confiava apenas em notícias públicas para orientar sua decisão sobre a venda de ações em 13 de fevereiro de 2020.

Nesta linha, a senadora Kelly Loeffler vendeu de US$ 1,28 milhão (R$ 6,4 milhões) a US$ 3,1 milhões (R$ 15,5 milhões) em ações de 24 de janeiro de 2020 a meados de fevereiro do mesmo ano, em 29 transações, duas das quais eram compras, segundo o The Daily Beast. O relatório disse que as vendas começaram no dia em que seu comitê de saúde organizou um briefing privado de coronavírus aos senadores.

Diante disso, o caso em análise consiste no suposto uso de informação privilegiada por quatro senadores norte-americanos, os quais teriam aplicado milhões em ações no mercado financeiro antes da instalação da crise de Covid-19 em seu país.

Nesse sentido, é importante entendermos do que trata o fato delituoso denominado Uso de Informação Privilegiada ou Insider Trading

O delito mencionado encontra-se inserido nos chamados crimes de colarinho branco e possui previsão, no ordenamento jurídico brasileiro, no artigo 27-D da Lei 6.385/1976 (Delitos contra o Mercado de Capitais), verbis:

Art. 27D. Utilizar informação relevante de que tenha conhecimento, ainda não divulgada ao mercado, que seja capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiros, de valores mobiliários: (Redação dada pela Lei nº 13.506, de 2017)

Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 31.10.2001).

O crime consiste na utilização de determinada informação privilegiada, que ainda não tenha sido divulgada ao mercado, e que possua a capacidade de propiciar vantagem indevida àquele que vazou a informação ou para aquele que a recebeu.

A saber, a vantagem indevida proporcionada pelo uso da informação privilegiada, no que tange ao referido caso prático, dá-se no enriquecimento ilícito por parte dos senadores, a partir do momento que se utilizaram de determinado privilégio para venda e compra de ações no Mercado Financeiro e, assim, lucrar milhões de dólares.

Nas palavras de Luiz Regis Prado (2019):

Bem jurídico e sujeitos do delito: tutelam-se o correto funcionamento do mercado de valores e a igualdade de oportunidades (bem jurídico transindividual). São destacados como elementos fundamentais da proteção jurídica: regularidade, transparência (princípio da transparência informativa societária), confiança no funcionamento do mercado de capitais, e igualdade de todos os operadores econômicos.

Em se tratando do sujeito ativo do delito, não há delimitação explícita por parte do tipo legal. Entretanto, há determinadas restrições e este crime só poderá ser cometido por determinadas pessoas. É imprescindível que o sujeito ativo tenha acesso à informação privilegiada, bem como tenha o dever de sigilo, ou seja, a associação entre o acesso e o dever de manter em segredo tal informação transforma o crime em delito especial próprio, desresponsabilizando penalmente todos aqueles que não possuam tais características. Em geral, o conhecimento da informação privilegiada é consequência do exercício de atividade profissional, empresarial ou correlata (PRADO, 2019).

Ainda, a doutrina aponta que os sujeitos passivos são a coletividade, o Estado, o investidor ou investidores lesados pela negociação e a própria pessoa jurídica (PRADO, 2019).

Destarte, o dever de sigilo antes mencionado encontra fundamentação no parágrafo segundo do artigo 27-D da Lei 6.385/1976:

§2º A pena é aumentada em 1/3 (um terço) se o agente comete o crime previsto no caput deste artigo valendo-se de informação relevante de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo. (Incluído pela Lei nº 13.506, de 2017) (grifo nosso)

Inegavelmente, tanto o senador Burr, quanto a senadora Loeffler, possuíam o dever de sigilo. Primeiramente, o senador participava de um grupo de emergências relacionado ao Covid-19 e recebia notícias diárias acerca da doença. Por outro lado, a senadora integrava um comitê de saúde, responsável por tratar diretamente de questões atinentes ao coronavírus.

De acordo com Luiz Regis Prado (2019):

É mínima a distinção entre a figura descrita no próprio tipo penal e a circunstância que supostamente denota maior gravidade da conduta, a fim de justificar o incremento da pena. O caput do art. 27-D prevê a utilização de informação relevante privilegiada, ao passo que, para incidência da causa de aumento de pena, é necessário comprovar o dever de sigilo a respeito de tal informação. Portanto, é o caráter sigiloso que, em tese, distingue uma e outra situação.

Nesse ínterim, cumpre destacar que a informação tornada pública deve ser além de confidencial, relevante, capaz de propiciar vantagem notável, a ponto de influenciar no dia a dia do mercado de capitais, gerando prejuízo ou benefício determinante para aquele ou aquela que seja atuante do mercado.

Por fim, categorizar de fato se houve ou não a incidência do delito só é correta dizer após o trânsito em julgado, mas no decorrer de nossa análise, foi possível percebermos que há uma grande probabilidade de se haver uma resposta positiva. Embora momentaneamente rasos, é possível afirmar, por ora, que há elementos suficientes de materialidade e autoria exigidos à propositura da ação penal.


REFERÊNCIAS

BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Traduzido por Nascimento, S., 2ª Ed., São Paulo, Editora 34, 2011.

PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico / Luiz Regis Prado. – 8. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.]

R7 e Reuters. Senadores dos EUA são acusados de uso de informação privilegiada. Disponível aqui. Acesso em: 26/03/2020.


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Daniel Lima

Mestrando em Direito Penal e Ciências Criminais. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Advogado.

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