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Crime e Arte  

Crime e Arte   

Pediu-me o grande magistrado e professor Daniel Avelar, da 2ª Vara do Tribunal do Júri de Curitiba, para escrever um texto sobre Otelo. Será parte de obra maior, com textos dos envolvidos no paradigmático júri simulado sobre a peça, ocorrido em fins de 2016. Na ocasião, fiz a trilha sonora incidental (piano), juntamente com o talento nato da incrível Luna Venceslau (flauta e percussão). Tentamos algo barroco/renascentista, e penso que tenha dado certo!

Imediatamente imaginei escrever sobre aquela trilha sonora. E foi inevitável pensar numa certa contextualização da obra shakespeariana, pois temos que Otelo foi escrita em 1603, e posicionou a trama no entorno da década de 1570, quando os turcos seguiam suas incursões invasivas para a Europa. Uma das intermináveis batalhas pelo Chipre (então sob domínio da República de Veneza) dá palco ao drama.

Estamos, portanto, desde a história até a literatura, na temporalidade da segunda metade do século XVI. É a estética musical renascentista que necessitamos investigar, se pretendemos sugerir ou intuir uma trilha sonora para Otelo.

As páginas da obra emanam amor, inveja, intriga, racismo, ciúme, traição, e como tal, essa mescla de paixões humanas que desemboca em homicídio e suicídio tem um som necessário! Conforme as palavras se desenvolvem no texto, sussurros, gritos, choros e lamentos, águas do mar e da tempestade, trovões expressam a percepção dos sentimentos tão incrivelmente manipulados por Shakespeare, em plena renascença.

E o que é a renascença? Evidentemente, é um conceito desconhecido para Shakespeare, muito embora ele o tenha vivido! O termo foi sugerido apenas pela historiografia posterior, que pretendia organizar o tempo a partir das rupturas paradigmáticas vistas no passado (v. Jacob Burckhardt, A Cultura do Renascimento na Itália, de 1867).

Tal organização, deveras controversa, credita ao tempo da renascença o momento de transição entre sistemas econômicos, quais sejam, o sistema feudal e o sistema capitalista. E esse tempo demora a passar: de fins do século XIV a fins do XVI, momento em que a cultura se revela (tanto quanto a economia e a política) como de substancial importância para a mudança.

Cultura renascentista é retorno ao passado grego clássico. A arte italiana, precursora desse movimento, espalha para toda a Europa uma espécie de retorno à arte – e à realidade – grega. As cores se abrem, as formas e harmonias se expandem, as notas musicais se declinam e se combinam (acordes).

A filosofia é retomada com vigor, a ciência se desenvolve e descobre um “novo” mundo, a Igreja se refaz, e os focos de Reforma são cada vez mais vigorosos e decisivos, as Américas recém descobertas estão revigorando os cofres públicos da Europa. O mundo ocidental, portanto, em plena ebulição, se revela, no século XVI, e a partir desse Renascimento, uma nova possibilidade de encarar a vida humana e a história.

Mas qual é o som desse humanismo? Um humanismo que está completamente impregnado na obra de Shakespeare, tendo em Otelo, talvez, a sua máxima expressão de passionalidade? Qual é a possível trilha sonora de Otelo, afinal?

Um som de várias notas simultâneas, de acordes tensos, de orquestração e coro completos, de polifonia recém nascente no século XVI: Otelo é polifônico! Na obra, ouvimos os sussurros da intriga e os gemidos do prazer carnal; as águas turbulentas do mar da inveja e os trovões de tempestade do ciúme e da traição; ouvimos o choro e lamento do amor não correspondido; o silêncio (a pausa musical) do cinismo e do escárnio; o grito de desespero da morte!

Mas Otelo é também visível e palpável: não só ouvimos o mar, os trovões, a tempestade, os sussurros, gemidos e gritos de amor… Vemos isso tudo, também! Otelo é ópera! É arte completa. É opera humanista renascentista da segunda metade do século XVI.

A ópera nasce precisamente na segunda metade do século XVI, na Itália. É, ao mesmo tempo, polifonia e drama. Música e encenação. É Otelo!

Onde está o fundador da ópera italiana, um dos maiores operistas de todos os tempos, precursor da polifonia, da dissonância, da tensão e do drama na música renascentista, compositor que eclode exatamente no fim do século XVI, o maestro Claudio Monteverdi? Em Veneza, a cidade do mouro!

A trilha sonora de Otelo, o mouro de Veneza é, afinal, a ópera de Monteverdi, o maestro de Veneza. De Shakespeare a Monteverdi, o drama do amor que enseja a morte está presente tanto em Otelo quanto em Orfeu.

André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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