Crime continuado e a problemática na interpretação de tempo e lugar do crime
Crime continuado e a problemática na interpretação de tempo e lugar do crime
Por Raphael Luiz de Oliveira Nolasco e William Rodrigues de Souza
Como se sabe, o crime continuado fora pensado e introduzido no ordenamento jurídico italiano pelos práticos italianos, que miravam uma atenuação da pena daqueles que praticavam reiteradamente o crime de furto do qual, se praticado pela terceira vez, implicava em pena de morte. Tal figura de concurso de crimes teve sua primeira aparição no direito moderno por meio do Código da Baviera de 1813.
Em nosso ordenamento, o Código Penal Brasileiro em seus primórdios preceituava a continuidade delitiva ou crime continuado em seu art. 51, §2º. Entretanto, com as diversas alterações normativas, referido instituto encontrou-se previsto no atual art. 71, o qual compreende o crime continuado quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devendo os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplicando-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.
Trata-se de instituto claramente introduzido aos ordenamentos em razão da Política Criminal, com o fim de abrandar a pena daqueles que reiteradamente praticavam delitos de mesma espécie, reconhecendo, quando preenchidos os requisitos, a prática de todos os delitos como delito único.
Contudo, no campo prático, o reconhecimento e a aplicação de tal dispositivo penal, em razão dos diversos requisitos elencados, e teorias interpretativas, pode ocasionar imbróglios intermináveis. A norma descritiva do crime continuado é extremamente generalista, não indicando ao intérprete qualquer auxílio, por exemplo, do que pode ser tido como crimes da mesma espécie.
Entretanto, este não é o único elemento que fica à mercê do hermeneuta. Ao realizarmos uma perquirição mais acurada é notório que o dispositivo não traz em seu texto as definições de tempo e lugar, bem como amplia a necessidade de mesma maneira de execução ou semelhante, que logicamente é necessidade legislativa, uma vez que o legislador não poderia precisar a pluralidade de situações que poderiam ocorrer no campo prático.
Assim, cabe ao intérprete buscar os meios de entender o que poderia ser considerado como tempo suficiente entre a primeira prática delitiva e a reiteração desta em um mesmo modus operandi ou semelhante, bem como o que se considerar como mesmo lugar.
Questiona-se reiteradamente quais seriam os critérios para aferição do transcurso de lapso temporal que se identificasse o liame psíquico do agente que ligaria aquele novo delito ao anterior já praticado. Ou seja, para se reconhecer temporalmente a continuidade delitiva, o próximo crime deve ocorrer em horas, dias, meses ou anos após o cometimento do primeiro fato criminoso análogo?
O doutrinador Rogério Greco disserta, in verbis:
Exige o artigo 71 do Código Penal que o agente atue em determinado tempo, a fim de que sejam aplicadas as regras relativas ao crime continuado. Também com relação a esse ponto existe divergência doutrinária e jurisprudencial, em razão da ausência de um critério rígido para sua aferição, pois conforme assevera Ney Moura Teles, “como mensurar essa quantidade de tempo, com base em quais critérios? Este problema é de difícil solução. Não se pode realizar análise meramente aritmética, mas entre os crimes deve mediar tempo que indique a persistência de um certo liame psíquico que sugira uma sequência entre os dois fatos. Não há portanto, como determinar o número máximo de dias ou mesmo de meses para que se possa entender pela continuidade delitiva. (grifo meu) (Greco, Rogério. Código Penal: Comentado. Niterói: Impetus, 2008)
De certo que coube aos hermeneutas e aos tribunais fixarem um prazo aritmético para tal. No caso do direito brasileiro, o Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento de que excedido o intervalo de trinta dias entre os crimes, não seria possível ter-se o segundo delito como continuidade do primeiro (HC 73.219/SP).
Contudo, a controvérsia se estende também no que tange à relação espacial do cometimento dos crimes em continuidade delitiva. O delito para se considerar continuado deve ser perpetrado na mesma rua, mesmo bairro, mesma cidade, ou se permitiria a aplicação quando praticado em várias ruas, bairros, zonas, cidades ou estados?
O STF novamente lançou luz ao tema, ao considerar ser possível, por exemplo, o reconhecimento da continuidade delitiva quando os delitos foram praticados em cidades diversas componentes de uma única região metropolitana (RE, Rel. Xavier de Albuquerque, RT 542/455).
Contudo, com o avanço da tecnologia, certamente não se pode mais pensar na aplicação de conceitos meramente geográficos ou geotécnicos, acreditando que os delitos somente ocorrem no campo físico.
Deve-se assumir também a possibilidade de cometimento de delitos em âmbito virtual, e, neste caso, questiona-se, como ficaria a lógica de aplicação do crime continuado, notadamente no que tange ao critério espacial?
Questiona-se tal ponto dado o fato de ser notório os diversos meios de ocultar, ao máximo, a sua localização no meio virtual, utilizando-se de diversos servidores distintos como meio de esconder sua real localização, o que dificultaria a verificação do quesito de espacialidade.
Imaginemos um estelionatário que utiliza do meio virtual para praticar os seus delitos. Como seria possível identificar de forma precisa de quais locais ele praticou cada empreitada criminosa?
Vejamos que ele pode estar no Estado de Minas Gerais, enquanto a vítima se encontra em São Paulo, sendo que, quando realizada a verificação, por exemplo, de sua localização via IP, constatou-se que este até mesmo praticou delitos supostamente fora do Brasil, em razão das diversas máscaras de rede utilizadas.
Qual o caminho a ser seguido? Será aplicada uma presunção de que todos os delitos foram praticados dentro do Brasil, desconsiderando, assim, a necessidade de aferição do real local do cometimento do delito?
Ou aplicaremos simplesmente o art. 6º do Código Penal e realizaremos a aferição de espacialidade do crime continuado considerando a localização da vítima?
Aguardemos a aparição de um caso de grande repercussão para vermos a saída que os tribunais adotarão para tal imbróglio ora lançado. De certo, não se poderá recusar a aplicação de tal instituto, sendo esta uma benesse ao infrator, independentemente do meio utilizado para a prática do delito.
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