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Crime de abandono e novas tecnologias


Por Dayane Fanti Tangerino


Lendo o rol de notícias do site do Supremo Tribunal Federal, veiculadas no dia 05/04/2016, uma delas, sob o título “Abandono de incapaz é crime e pode levar à pena de seis meses a três anos de prisão” (veja aqui), me chamou a atenção, primeiro por se tratar de um tipo penal que, a meu ver, está esquecido na legislação penal – artigo 133, do Código Penal (Abandono de Incapaz) – e, em segundo lugar pelo teor da notícia que trazia dentre algumas afirmações a de que o menor, em qualquer caso, não pode ser deixado sozinho em casa, sob pena de enquadramento dos responsáveis no tipo penal aludido.

Preceitua o artigo 133 do Código Penal brasileiro que:

“Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono: pena – detenção, de seis meses a três anos”.

Ademais, em seus artigos, continua o preceito penal trazendo as figuras qualificadas do tipo, no sentido de que “se do abandono resulta lesão corporal de natureza grave: reclusão, de um a cinco anos” e, por fim, “se resulta a morte: reclusão, de quatro a doze anos”.

Encerrando o tipo sob comento, temos no parágrafo 3º as hipóteses de aumento da pena, quais sejam: se o abandono ocorre em lugar ermo; se o agente é ascendente ou descendente, cônjuge, irmão, tutor ou curador da vítima e se a vítima é maior de 60 (sessenta) anos.

Analisando o tipo penal e refletindo acerca da afirmação de que os responsáveis que deixam uma criança sozinha em casa, em qualquer caso, serão responsabilizados por crime de abandono, me vem a questão de como interpretar o conceito de abandono no contexto de uma sociedade de risco e no âmbito das novas tecnologias?

Na concepção do dicionário Michaelis, “abandono” tem como definição 1. Ação ou efeito de abandonar; 2. Desamparo, desprezo; 3. Desistência, renúncia; 4. Imobilidade, indolência, moleza, sendo que, na seara jurídica, temos outras acepções para o termo.

Para o eminente e saudoso professor Paulo José da COSTA JR. (2010), “abandonar consiste em desamparar” e completa afirmando que tal conduta consiste em “apartar-se o agente da vítima, deixando-a entregue à própria sorte”, devendo tal abandono ser material, não importando se é definitivo ou temporário, dividindo, citado autor, a conduta em duas ações: comissiva, que seria aquela consistente em depositar a vítima em um ponto e afastar-se, e a omissiva, qual seja, aquela na qual o agente não assiste o incapaz, quando lhe incumbia fazê-lo. Por fim, completa COSTA JR. dizendo que a assistência, que se desdobra em cuidado e guarda, “deriva do dever de autoridade” do agente sobre a vítima, entendendo que “a guarda compreende a vigilância”, pressupondo “o zelo pela segurança pessoal alheia.

Para Guilherme de Souza NUCCI (2010), o objeto jurídico do crime de abandono de incapaz é “a proteção à vida e à saúde da pessoa humana”, sendo que a guarda trata do mais elevado nível de cuidado, pois exige proteção, amparo e vigilância.

Utilizando tais definições e pinçando alguns termos relevantes nestes conceitos, podemos começar a construir a ideia de que os responsáveis pela guarda de incapaz – visto aqui como um menor, para fins do argumento proposto – são penalmente responsáveis pela proteção, pela vigilância e pela segurança deste menor.

Ou seja, aquele que não assiste este menor quando deveria fazê-lo, incide no tipo capitulado no artigo 133 da lei penal, entendendo-se aqui o termo “assistir” como dever de zelar pela segurança da vida e da saúde alheia, através, inclusive, de vigilância.

Assim, a conduta de um pai ou uma mãe ou mesmo um(a) tio(a) ou avô(ó) que se omite em vigiar o que está o menor acessando e executando em meio web ou mesmo através de qualquer espécie de tecnologia de informação e comunicação, reflete em uma responsabilidade penal, inserta no referido tipo descrito no artigo 133 do Código Penal?

Podemos interpretar o conceito de abandono à luz das novas tecnologias, ampliando a responsabilidade penal dos guardiões e dinamizando o espectro de proteção da vida e da saúde do menor que, no atual contexto, fica exposto a riscos em meio web com tanta – ou até mais – intensidade do que no ambiente físico?

Este nos parece um interessante ponto de reflexão, pois se aprofundarmos a análise e olharmos para o parágrafo 3º do artigo 133, que traz as causas de aumento de pena, veremos que quando o agente é ascendente da vítima, a pena é aumentada, impondo-se conduta ainda mais rígida aquelas pessoas próximas da vítima, seus pais e avós.

Temos ainda neste mesmo elenco penal o “irmão” como figura responsável pela guarda e segurança pessoal da vítima, ou seja, seria o irmão de 18 anos responsável pelo “abandono” de seu irmão menor com, digamos 14 anos, que acessa conteúdos e executa ações na Internet ou através de NTIC´s, respondendo penalmente por sua omissão em não vigiar este irmão menor?

Tal análise deve ser realizada com parcimônia quando tratamos do crime de abandono, em especial se fizermos tal análise sob o contexto das novas tecnologias e da sociedade de risco.

Sabemos que a atividade on line e o uso de novas tecnologias é cotidiana e intensa entre os jovens e as crianças, por vezes estimulada pelos próprios responsáveis: quem nunca presenciou os pais, em um restaurante, entregando aos filhos um tablet ou smartphone para que a criança jogue algo on line enquanto lhes proporciona alguns minutos de paz a fim de que possam usufruir da refeição?

Além disso, o uso de ferramentas tecnológicas e a conexão em rede já faz parte da rotina das famílias: vemos a cada dia mais e mais pais entregando celulares aos filhos – cada vez mais pequenos – para que possam se comunicar e proporcionar tranquilidade aos responsáveis que, com isso, podem localizar mais facilmente seus filhos; vemos as escolas implementando sistemas de estudo on line, onde as crianças são obrigadas a se conectar para realizar as atividades escolares; as atividades comunitárias e esportivas fazem uso de redes sociais para uma maior interação e para a dinamização dos seus comunicados, entre outros tantos exemplos que demonstram que um indivíduo, na atualidade, seja ele criança, adulto ou idoso, capaz ou incapaz, não consegue mais estar “fora da rede”.

Em outras palavras, se o dever de vigilância e cuidado dos pais sobre a segurança on line dos filhos for ser interpretado de forma ampla e irrestrita, sob pena de incidência do crime de abandono de incapaz, não restará aos pais nada além de tornar a vida on line destes filhos um sistema prisional ad hoc, ou seja, um sistema de vigilância cerrada, pautado na intrusão sistemática e rotineira da privacidade dos filhos, sob o argumento de que se não os vigiar poderá estar incidindo em abandono. O medo da punição não deve ser maior que a preocupação em proteger! Um pai deve zelar pela segurança virtual de seu filho, promovendo-lhe, por exemplo, educação digital e não invadindo sua privacidade e privando-o do uso dos equipamentos, castigando o filho para evitar ser punido por eventual abandono!

Somos contrários a esta ideia de vigilância sistemática da privacidade virtual das crianças e adolescentes. Acreditamos que um adulto competente para projetar-se, viver e comunicar-se, interagir e proteger-se no mundo virtual não se desenvolve com políticas familiares, escolares e sociais restritivas e iminentemente protecionistas, mas sim com ações protetivas, pautadas no diálogo honesto e sem maquiagem, na educação digital e na relação de confiança entre pais e filhos, buscando-se a formação de um cidadão autodeterminado e capaz de entender os riscos decorrentes das novas tecnologias e proteger-se deles.

Se não propiciarmos aos pais este espaço de ensino-aprendizagem para com seus filhos, estimulando-os, não a abandonar sua prole à sorte de todos os males provenientes das NTIC´s, mas sim a trabalhar em prol da formação de seres autônomos que aprendem com seus próprios erros, em um ambiente familiar dotado de confiança e auxílio, muito menos severo do que aquele com o qual terá que lidar na idade adulta, estaremos fadados a assistir uma geração de adultos – como já vemos em alguns pontos – insegura e incompetente para lidar com o erro e o fracasso; seres que, desde a mais tenra idade sempre foram alijados de tomar decisões e impossibilitados de conhecer – e mesmo sofrer – as consequências de suas ações.

Que o Direito Penal siga sendo um instrumento de proteção do cidadão frente aos arbítrios do Estado e não se torne – como vem ocorrendo (vide “Lei da Palmada”) – uma ferramenta de intervenção cada vez mais invasiva da vida privada e das relações familiares. Que nossos jovens e nossas crianças possam entender e aprender que, sim, os abusos que seus pais ou responsáveis, eventualmente venham a cometer serão punidos pela Lei, mas também que esses pais são os únicos capazes de ensiná-los a errar e a lidar com esses erros, pois se retirarmos dos pais a possibilidade de ensinarem seus filhos, como nós fomos ensinados pelos nossos pais e eles por nossos avós, estaremos com isso, ai sim, abandonando nossos filhos, nossos jovens e nossas futuras gerações ao mais terrível de todos os perigos: o medo de errar!


* Dedico este artigo especialmente a minha filha, Sofia (5) e a minha sobrinha, Isabela, que acaba de nascer. Que elas colham os frutos de seus próprios atos sempre, sejam eles bons ou maus, e que nunca tenham medo de errar!


REFERÊNCIAS

COSTA JR., Paulo José; COSTA, Fernando José. Curso de Direito Penal. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 10 ed. São Paulo: RT, 2010.

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Dayane Fanti Tangerino

Mestre em Direito Penal. Advogada.

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