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Crime e mal-estar

Crime e mal-estar. Freud voltou (se, um dia, chegou a ir). Aliadas às da economia política, suas categorias são cada vez mais lúcidas e úteis para que possamos compreender o fenômeno do crime. Talvez aqui, na economia política e na psicanálise, tenhamos todos os ingredientes de entendimento acerca do crime, da criminalidade, e dos mecanismos de controle e punição.

Num livreto bombástico Freud apresenta ideias compatíveis com o início do século XX que estão completamente em voga ainda hoje, as quais passamos a resenhar no texto de hoje. Para facilitar as referências e citações – como um “material de estudo” – eu indico a página, logo após a frase ou ideia do autor, na obra declinada ao fim (O mal-estar…).

É difícil escapar à impressão de que em geral as pessoas usam medidas falsas, de que buscam poder, sucesso e riqueza para si mesmas e admiram aqueles que os têm, subestimando os autênticos valores da vida. E no entanto corremos o risco, num julgamento assim genérico, de esquecer a variedade do mundo e de sua vida psíquica (p. 7).

Façamos agora a fantástica suposição de que Roma não seja uma morada humana, mas uma entidade psíquica com um passado igualmente longo e rico, na qual nada que veio a existir chegou a perecer, na qual, juntamente com a última fase de desenvolvimento, todas as anteriores continuam a viver (p. 13).

O que revela a própria conduta dos homens acerca da finalidade e intenção de sua vida, o que pedem eles da vida e desejam nela alcançar? (…) Eles buscam a felicidade, querem se tornar e permanecer felizes. Essa busca tem dois lados, uma meta positiva e uma negativa; quer a ausência de dor e desprazer e, por outro lado, a vivência de fortes prazeres. No sentido mais estrito da palavra, “felicidade” se refere apenas à segunda. Correspondendo a essa divisão de metas, a atividade dos homens se desdobra em duas direções, segundo procure realizar uma ou outra dessas metas – predominantemente ou mesmo exclusivamente (p. 19) … é simplesmente o programa do princípio do prazer que estabelece a finalidade da vida. … somos feitos de modo a poder fruir intensamente só o contraste, muito pouco o estado. [Pois, conforme] Goethe: “nada é mais difícil de suportar do que uma série de dias belos” (p. 20).

A satisfação irrestrita de todas as necessidades se apresenta como a maneira mais tentadora de conduzir a vida, mas significa pôr o gozo à frente da cautela, trazendo logo o seu próprio castigo. (…) todo sofrimento é apenas sensação, existe somente na medida em que o sentimos, e nós o sentimos em virtude de certos arranjos de nosso organismo (p. 21).

É de particular importância o caso em que grande número de pessoas empreende conjuntamente a tentativa de assegurar a felicidade e proteger-se do sofrimento através de uma delirante modificação da realidade. Devemos caracterizar como tal delírio de massa também as religiões da humanidade. Naturalmente, quem partilha o delírio jamais o percebe (p. 26).

[O amor. O amor sexual. Gozo da beleza. Atitude estética. Fuga para a doença neurótica. Psicose.]

A palavra “civilização” designa a inteira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos antepassados animais, e que sevem para dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si (p. 34).

“Ama teu próximo como a ti mesmo”. (…) eu tenho que amá-lo se ele é filho de meu amigo, pois a dor do amigo, se algo lhe acontecesse ao filho, seria também minha dor, eu teria de compartilhá-la. Mas se ele me é desconhecido e não me pode atrair por nenhum valor próprio, nenhuma significação que tenha adquirido em minha vida emocional, dificilmente o amarei. E estaria sendo injusto se o fizesse, pois meu amor é estimado como um privilégio pelos meus; seria injusto para com eles equipará-los a desconhecidos. (…) tenho de confessar, honestamente, que ele tem mais direito à minha hostilidade, até ao meu ódio. Ele não parece ter qualquer amor por mim, não me demonstra a menor consideração (p. 55).

Heinrich Heine: “devemos perdoar nossos inimigos, mas não antes de serem executados”. (…) Homo homini lupus; quem, depois de tudo o que aprendeu com a vida e a história, tem coragem de discutir essa frase? (p. 57).

[Sentimento de culpa.] O problema mais importante da evolução cultural. O preço do progresso cultural é a perda da felicidade, pelo acréscimo do sentimento de culpa. 81 (…) O sentimento de culpa nada é, no fundo, senão uma variedade topográfica da angústia. (…) a consciência de culpa produzida pela cultura não seja reconhecida como tal, permaneça inconsciente ou venha à luz como um mal-estar, uma insatisfação para a qual se busca outras motivações. Pelo menos as religiões não desconheceram jamais o papel do sentimento de culpa na cultura. Elas pretendem (…) redimir a humanidade desse sentimento de culpa a que chamam pecado (p. 82).

Na vida orgânica vemos ainda como as forças lutam entre si, e o resultados do conflito mudam constantemente. Assim também as duas tendências, a da felicidade individual e a de união com outros seres, têm de lutar uma com a outra no interior de cada indivíduo; assim os dois processos, de evolução individual e cultural, precisam defrontar-se e disputar um ao outro o terreno. Mas essa luta entre indivíduo e sociedade não deriva da oposição provavelmente inconciliável entre os dois instintos primevos, Eros e Morte; significa uma desavença na casa da libido, comparável à briga pela distribuição da libido entre o Eu e os objetos, e admite um equilíbrio final no indivíduo (p. 88).

Os juízos de valor dos homens são inevitavelmente governados por seus desejos de felicidade, e que, portanto, são uma tentativa de escora suas ilusões com argumentos. (…) A meu ver, a questão decisiva para a espécie humana é saber se, e em que medida, a sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas à vida em comum pelos instintos humanos de agressão e autodestruição (p. 93).


REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2011.


Sobre crime e psicologia, leia ainda Psicologia do homicídio (AQUI) e Crime e culpa na ótica psicanalítica (AQUI).

André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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