O crime passional de Doca Street
O crime passional de Doca Street
O CRIME
No dia 30 de dezembro de 1976, Doca Street, após intensa discussão com sua namorada, Ângela Diniz, a qual pôs fim ao relacionamento que durava aproximadamente quatro meses, desferiu quatro tiros contra a moça, três no rosto e um na nuca, deixando-a totalmente transfigurada.
O motivo do crime foi a não aceitação da escolha de Ângela em terminar o relacionamento, razão pela qual foi considerado um homicídio passional e a tese defensiva articulada fora a “legítima defesa da honra com excesso culposo”. Teria Doca realmente matado por amor?
Doca Street e Ângela Diniz se conheceram em agosto de 1976 durante um jantar realizado pela elite paulistana, instante em que perceberam grande sintonia. Um mês depois, apaixonado, Doca abandonou sua esposa e filhos para viver sua paixão com Ângela.
Assim, o casal passou a morar na casa que Ângela tinha em Búzios (RJ). Desde então a socialite que bancava todos os luxuosos gastos do casal, passando, literalmente, a sustentar Doca Street.
Em razão de ser extremamente ciumento, Doca fazia com que Ângela, deixasse de frequentar os lugares que sempre frequentou, bem como a distanciou de seus amigos. Doca controlava todos os atos da moça, o que, posteriormente, passou a lhe incomodar, haja vista que sempre foi uma mulher independente e que não tolerava nenhum tipo de submissão.
Por conta dessa possessividade de Doca, o romance que viviam esfriou, e, no lugar da paixão vieram as brigas.
A briga fatídica aconteceu na véspera do ano novo de 1976/1977, onde o casal decidiu passar o dia na praia. Entre muitos coquetéis de vodca, Ângela ficava cada vez mais desinibida, o que estava irritando seu controlador, Doca Street.
A gota d’água foi quando uma alemã, Gabrielle Dayer, chegou até Ângela oferecendo os artesanatos que confeccionava e vendia na praia, momento em que a moça se encantou pela estrangeira e tentou seduzi-la. Doca não tolerou o comportamento da namorada, sentiu-se humilhado, e, então, retornaram para casa em que viviam.
Como Ângela havia ingerido muita bebida alcoólica naquele dia, ao chegarem em casa, Doca foi lhe ajudar a tomar banho. Contudo, de alguma forma, retomaram, de forma muito intensa, a briga que tiveram por conta da alemã, e, por conta das atrocidades que ouvia de seu namorado, Ângela é levada ao descontrole, a ponto de ter quebrado toda a mobília de seu banheiro.
Logo após a confusão, mais calma, porém ainda sobre efeito de bebida alcoólica, Ângela anunciou à Doca o fim do relacionamento. Inconformado, tentou, insistentemente convence-la de que essa não era sua vontade, pois a moça estava em estado de embriaguez, além de argumentar que lhe amava de forma muito intensa e por isso era tão ciumento. Entretanto, Ângela estava decidida, não queria mais aquele relacionamento abusivo.
Assim, o rapaz pegou seus pertences e foi embora. Todavia, quando já estava há alguns quilômetros de distância da casa que saia, Doca decidiu voltar para, mais uma vez, demonstrar a Ângela que pôr um fim no relacionamento era uma decisão precipitada.
Ao retornar, Doca encontra Ângela sentada perto da piscina, descansando. Ele se aproxima da moça, e, de joelhos, pede perdão, bem como que ela reconsiderasse a decisão do término, mas Doca não teve a resposta que gostaria de ouvir. Ângela olhou em seu rosto e disse que se ele quisesse ficar, teria que suportar dividi-la com outros homens e mulheres.
Nesse instante, Doca ficou transtornado, não poderia aceitar esse tipo de comportamento vindo de uma mulher, seria “humilhante”, a sociedade o julgaria.
Assim, movido pelo ódio que sentiu ao ouvir essa frase de Ângela, quando a moça se levantou para ir ao banheiro, Doca Street, por trás, proferiu a seguinte frase “se você não vai ser minha, não será de ninguém”, e, em seguida, desferiu quatro tiros contra Ângela, deixando a arma de fogo no local do crime, ao lado do corpo da vítima.
Após o crime, Doca Street, fugiu para Minas Gerais.
A VÍTIMA
Ângela Maria Fernandes Diniz nasceu em 10 de novembro de 1944, em Belo Horizonte.
Ângela se casou aos 17 anos com o engenheiro Milton Villas Boas, cujo relacionamento durou nove anos e como fruto, tiveram três filhos.
Em uma época em que o desquite era malvisto pela sociedade, Ângela não teve dúvidas em se desquitar quando percebeu que estava em uma relação infeliz. Era, de fato, uma mulher além de sua época, era independente, bonita, não aceitava submissões e não se importava com opiniões alheias.
Teve uma vida agitada, por três vezes apareceu em notícias que envolviam condutas ilícitas.
A primeira foi quando confessou o assassinato de seu empregado, alegando legítima defesa, haja vista que, supostamente, o mesmo teria tentado estupra-la. Contudo, logo a versão foi desmentida por seu namorado da época, Tuca Mendes, o qual assumiu a autoria do crime, foi processado, julgado e absolvido. Ângela havia mentido para proteger a reputação de Tuca, pois ele era casado.
A segunda foi quando sequestrou sua filha da casa da avó, levando-a de Minas Gerais para o Rio de Janeiro. Na verdade, Ângela queria apenas convívio com a filha, haja vista que como consequência do desquite, perdeu a guarda. Ocorre que por agir de forma ilegal, foi processada e condenada em seis anos de prisão, mas recorreu e não chegou a cumprir a pena.
A terceira ocorreu quando fora surpreendida com maconha pela polícia. Alegou que havia se tornado viciada em drogas desde o episódio em que presenciou a morte de seu empregado.
Em razão desses escândalos e do próprio jeito ousado da vítima, bem como do pensamento machista que prevalecia nos anos 70, a defesa de Doca Street se aproveitou de tudo isso para arquitetar uma defesa inabalável, capaz de transformar o assassino em herói.
O JULGAMENTO
Posteriormente a execução do crime, Doca fugiu para recorrer à sua mãe, ficando escondido em um sítio localizado no Município de Paço Lago (MG). Enquanto isso, seus pais foram atrás de um advogado que pudesse lhe defender.
A defesa arquitetada foi de Doca não se entregar à polícia, mas sim à imprensa, previamente avisada de sua aparição. O rapaz fora encontrado embriagado e com três garotas de programa, dando sua versão de crime passional. Essa foi a tese de defesa: homicídio passional praticado em legítima defesa da honra com excesso culposo.
Depois de aparecer em público e prestar essas declarações, fora preso pela polícia do Rio de Janeiro.
No dia 18 de outubro de 1979, houve o primeiro julgamento de Doca, cujo advogado contratado foi o famoso criminalista Evandro Lins e Silva, de memorável carreira. Ao utilizar a aludida tese defensiva, esmiuçou a vida da vítima, mostrando-a como pessoa promíscua, transformando Doca na verdadeira vítima e Ângela culpada e merecedora de sua morte.
Como se está falando dos anos 70, tempo de um machismo gritante e opressão da mulher, a defesa foi um sucesso. Doca era aplaudido. Ângela era chicoteada. Os jurados o condenaram a pena de reclusão de dois anos, com direito a suspensão condicional da pena (não precisaria se recolher ao cárcere). Um homicídio doloso com essa pena irrisória foi praticamente uma absolvição.
Inconformada, a acusação recorreu da decisão. Os movimentos feministas da época ganhavam voz, todas as mulheres se sentiam injustiçadas, todas estavam lutando pela memória de Ângela, não como pessoa imoral, mas como ser humano que tem direito à vida, que tem o direito de fazer suas próprias escolhas.
Foi quando, então, surgiu o slogan “quem ama não mata”. Até o poeta Carlos Drummond de Andrade se manifestou em condolências à vítima, escrevendo a famosa reflexão:
Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras.
Em razão disso, fora designado novo julgamento, o qual ocorreu em novembro de 1981, figurando como advogado de defesa do réu, o Dr. Humberto Telles. Dessa vez, o júri não entendeu que Doca agiu em legítima defesa da honra, mas sim que houve homicídio doloso qualificado, razão pela qual foi condenado em quinze anos de reclusão.
Desde então a tese de legítima defesa da honra não é aceita, por ser, o instituto da legítima defesa, incompatível com o bem jurídico honra.
TESE DA LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA
A tese da legítima defesa da honra não foi o único desrespeito contra as mulheres que fora aceito em nosso ordenamento jurídico.
Antes dela, a própria lei previa condutas que o marido poderia fazer para “corrigir” atos de sua esposa que, ao seu ver não eram corretos. Ou seja, historicamente tem-se a mulher como objeto de propriedade de seu marido, sendo submetida ao seu juízo de valor, sem direito de questionar, opinar e muito menos de se impor.
Tanto é que, como ser detentor de sua mulher, o homem podia matá-la em caso de adultério nos tempos do Brasil-Colônia. Posteriormente, já em 1890, também era possível o cometimento de homicídio contra a esposa em caso de adultério, e, se alegado um “estado de perturbação dos sentidos e da inteligência”, o autor do delito não responderia por crime nenhum.
Já o Código Penal de 1940, que está em vigor, não trouxe previsão legal autorizativa de homicídio ao marido que se visse traído pela esposa. Seria um avanço? Nem tanto. Apesar da lei ter mudado, o pensamento, visão e valores da sociedade permaneciam os mesmos. Ainda se vivia em meio a um machismo gritante. Na verdade, a igualdade entre os gêneros só ganhou, efetivamente, feição, após a Constituição Federal de 1988.
Em razão disso, cumulado com o fato de o homicídio doloso ser julgado pelo Tribunal do Júri, onde pessoas comuns da sociedade que julgam o réu, renomados advogados se aproveitaram da opinião patriarcal existente para lançarem a tese da legítima defesa da honra com excesso culposo. A justificativa estaria no fato de que, o marido traído, envergonhado, humilhado, teria o direito de “lavar sua honra”, matando a causadora da humilhação. Tanto é verdade que a maioria dos passionais eram réus confessos, pois sentiam necessidade de mostrar uma “resposta” a sociedade.
Com o passar do tempo, as visões foram mudando, a igualdade de gêneros começou a ser amplamente debatida, a sociedade clamava pelo fim da impunidade. Ademais, juridicamente falando, legítima defesa não pode ser invocada para defender honra de alguém, haja vista que a legítima defesa só é utilizada em caso de agressão física, bem como a honra, é personalíssima, uma vez perdida, não há como recuperar através de outra pessoa.
O marco inicial da não aceitação dessa tese se deu justamente a partir do segundo julgamento de Doca Street, em 1981.
Todavia, a efetiva igualdade entre os gêneros só veio com a Constituição Federal de 1988, não mais se admitindo a impunidade daqueles que decidem cometer atos criminosos como forma de vingança, ódio, egoísmo.
Caso atualmente a tese de legítima defesa da honra seja sustentada em algum tribunal, será considerada inconstitucional, por afrontar disposições expressamente previstas na Constituição Federal.
REFERÊNCIAS
ELUF. Luiza Nagib. A paixão no banco dos réus. 2009. 4ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
REFERÊNCIAS WEBGRÁFICAS
Metajus, OGlobo, OABSP e Wikipédia.