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Crime permanente e a prisão em flagrante do deputado Daniel Silveira

O Parlamento brasileiro parou em razão da prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), acusado de ter praticado crimes contra a Segurança Nacional. O caso teve grande repercussão por causa dos pontos polêmicos envolvendo imunidade parlamentar, inafiançabilidade e flagrante. Neste breve ensaio, expomos sobre a interpretação da situação de flagrância e o conceito de crime permanente. Alerta-se, desde já, que aqui não há qualquer julgamento sobre o teor dos vídeos postados, nem sobre a relação das falas com a atividade parlamentar.

Prisão do deputado Daniel Silveira

Inicialmente, deve-se definir o crime permanente visando alcançar a legitimidade ou não do flagrante. Conforme tivemos a oportunidade de expor, é “permanente o crime cuja consumação se estende durante o período em que o agente pratica o núcleo do tipo legal. O crime permanente contrapõe-se ao crime instantâneo, porquanto neste a consumação ocorre com a prática do verbo descrito no tipo e o que vier depois é desenvolvimento natural da conduta”[1]. O diferencial está no núcleo do tipo penal, no verbo que descreve a conduta incriminada, e não na duração das consequências do crime.

O tradicional exemplo de crime permanente tem previsão no art. 148 do CP. O tipo penal descreve a conduta de “privar alguém de sua liberdade, mediante sequestro ou cárcere privado”. O comportamento do agente não é retirar alguém de sua casa ou colocar alguém em cativeiro. Se assim fosse (hoje até o deslocamento é desnecessário), teríamos verbos que denotam uma ação que se esgota no momento em que há o atentado contra a liberdade da vítima e que o tempo de cárcere seria mero exaurimento. Ao eleger o verbo privar, o legislador promoveu a consumação do delito para um lapso temporal que tem início com a privação da liberdade e se encerra com a restituição da liberdade. Em termos simples, o crime não se exaure enquanto perdura o contexto antijurídico. A consumação se prolonga pelo tempo em que o agente delitivo voluntariamente mantém a vítima em estado de privação de liberdade, seja por horas, dias, meses ou até anos.

A maior parte dos tipos penais, no entanto, descrevem condutas que se esgotam na fração de tempo em que o resultado acontece. Para ilustrar, vejamos o tipo do homicídio, em sua modalidade simples: matar alguém (art. 121, caput). A ação incriminada é atentar contra a vida de uma pessoa e a consumação se dá com a morte da vítima. Ao esgotar os atos de execução, ainda não há consumação se não se constata o falecimento de quem foi atacado. O homicídio, como tantos outros, é crime instantâneo, pois “a consumação ocorre com a prática do verbo descrito no tipo penal e o que vier depois é desenvolvimento natural da conduta”[2], é dizer, é irrelevante que a situação antijurídica se prolongue. Aproveitando o exemplo, a consumação do homicídio acontece no preciso momento da morte, ou seja, quando cessam as atividades encefálicas, no entanto, seu efeito é duradouro[3].

A interpretação sobre a consumação deve ser feita conforme a definição do art. 14, I do CP, ou seja, considera-se consumado o crime quando “nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal”. A definição legal diz respeito ao comportamento descrito no tipo ou a incriminação constante de seu preceito primário, o qual pode exigir um resultado ou não, vindo daí a distinção entre crimes materiais e formais. Se o tipo descreve e exige o resultado, a consumação está configurada no preciso momento de sua realização, no caso dos crimes materiais, mas é possível que o legislador se conforme apenas com a prática da conduta, independentemente de suas consequências sobre o bem jurídico, como nos crimes formais. Nestes, o resultado naturalístico é desnecessário para fins de consumação.

Um setor da doutrina costuma apresentar um conceito de crime instantâneo com efeitos permanentes para os casos em que a consumação acontece em determinado momento, mas as sequelas ao bem jurídico são irreversíveis. Acima já apontamos o exemplo do homicídio, que se consuma no instante em que a vítima morre e sua consequência é duradoura. Como já tivemos a oportunidade de expor, a classificação (ou terminologia) é imprecisa, “sendo mais acertado afirmar que os efeitos da morte encefálica não são revertidos. Caso contrário, a classificação do furto deve ser revista, em especial nos casos em que a coisa subtraída não é recuperada, de sorte que seus efeitos também seriam permanentes. O correto é que, no contexto patrimonial, o resultado pode ser revertido”[4], se, por exemplo, a coisa subtraída retornar ao seu legítimo proprietário.

Crime permanente, portanto, não é sinônimo de crime instantâneo de efeitos permanentes, modalidade que mais atrapalha do que ajuda. A descrição de um crime permanente faz uso de um verbo que denota uma conduta que se prolonga no tempo, de modo que existam um termo inicial e um termo final do período da consumação. Já nas hipóteses do que se chama “crime instantâneo de efeitos permanentes”, a estrutura típica é composta de verbo que faz referência a um momento único da consumação, mas as consequências ao objeto de proteção continuam. O que interessa na distinção é o verbo empregado. Os efeitos prolongados não estão relacionados à estrutura típica e dependem da avaliação do caso concreto. Como exposto acima, os crimes patrimoniais, como o furto, podem ou não ter consequência prolongada a depender da restituição da coisa ou recuperação do bem. Se o prejuízo da vítima for definitivo, o crime terá efeito irreversível (redução patrimonial).

O próximo passo na análise da existência ou não de crime permanente no caso envolvendo o citado deputado requer que se volte o olhar ao “mandado de prisão” emitido pelo STF. Os crimes imputados ao deputado são os seguintes, todos previstos na Lei de Segurança Nacional (Lei n° 7.173/83): art. 17 (Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito); art. 18 (Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados); art. 22 (Fazer, em público, propaganda: I – de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social; (…) IV – de qualquer dos crimes previstos nesta Lei); art. 23 (Incitar: I – à subversão da ordem política ou social; II – à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis; (…) IV – à prática de qualquer dos crimes previstos nesta Lei); art. 26 (Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação).

Esses tipos penais representam crimes de consumação instantânea que, eventualmente, podem ter efeitos prolongados no tempo. Isso não significa que esses tipos podem ser interpretados como crimes permanentes. Nos arts. 17 e 18, os verbos são tentar mudar e tentar impedir, que presumem condutas determinadas capazes de alterar a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito ou obstaculizar o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados. Mesmo interpretando que um vídeo seja capaz de mobilizar multidões para atacar de maneira relevante as instituições democráticas, o fato não passaria de mero ato preparatório. Sendo assim, não caberia o flagrante.

No caso do art. 22, fazer propaganda é emitir comunicação com o intuito de convencer os receptores de algo. É conduta que se assemelha à apologia que, para fins penais, é emanar publicamente um juízo de valor positivo sobre um fato ilícito. O exemplo mais comum é o art. 287 do Código Penal (apologia de crime ou criminoso). Especificamente na Lei de Segurança Nacional, o art. 22 prevê o crime de apologia a comportamentos atentatórios ao Estado democrático de direito. A apologia consuma-se no momento em que a mensagem emitida alcança número indeterminado de pessoas, independentemente de alguém ser convencido da ideia propagada. É um crime formal ou de consumação antecipada, já que o que vier a acontecer depois é post factum impunível. A mesma interpretação vale ao art. 23 que também resta consumado com a propagação da ideia pelo agente, ainda que ninguém seja encorajado a praticar os delitos fomentados.

Por fim, a consumação da calúnia e da difamação, à semelhança dos tipos equivalentes previstos no Código Penal, ocorre quando a mensagem é alcançada por pelo menos uma pessoa que não seja a própria vítima. Esses delitos atentam com prioridade a denominada (e tradicional) honra objetiva, que é a reputação do ofendido perante a comunidade ou a boa imagem de alguém perante uma coletividade. Quando o primeiro receptor conhece da ofensa, o que vier posteriormente não é continuidade da consumação e sim post factum impunível que interfere no cálculo da pena. Se assim fosse, chegaríamos à conclusão de que a cada vez que alguém tivesse acesso à ofensa, haveria um novo crime individual, resultando num absurdo concurso indefinido de infrações. Ainda no que toca às últimas imputações, em análise dogmática, importante frisar que eventual vítima não é qualquer ministro da Suprema Corte Federal, senão apenas seu Presidente. A letra da lei não deve ser sobrepassada estando em jogo a liberdade das pessoas.

Ainda caberia uma pergunta ao leitor: a postagem de um vídeo não poderia caracterizar a continuidade delitiva, já que, a qualquer momento, as mensagens do deputado poderiam ser acessadas virtualmente? Defendemos uma resposta negativa. Mesmo que se questione a necessidade de adaptar a lei de 1983 aos dias atuais, em que as redes sociais são poderosas influências, o direito penal não permite interpretação extensiva. Uma vez postado o vídeo, os crimes atribuídos se consumam à medida que a mensagem atinja interlocutores distintos. A manutenção do vídeo e a possibilidade de compartilhamento são desmembramentos naturais da incitação, apologia, calúnia ou difamação já consumadas. Se um número considerável de pessoas tiver acesso à mensagem, a consumação da incitação e da apologia estão consolidadas e o que vier depois é exaurimento. Aplica-se o mesmo raciocínio jurídico à calúnia e à difamação, que admitem interpretação ainda mais restritiva, pois a consumação se dá com o alcance de um único receptor.

Para reforçar o argumento, pode-se fazer remissão à Lei n° 8.069/1990. No Estatuto da Criança e do Adolescente há tipos penais que tutelam a dignidade sexual de menores de 18 anos com a criminalização de diversos comportamentos. O art. 240 define como ilícitas as condutas de “produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente”. Mais à frente, também o art. 241 reconhece como crime “vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”. Em acréscimo, o art. 241-A criminaliza os comportamentos de “oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”.

O legislador adotou técnica que abrange alguns tipos de consumação instantânea e outros de consumação permanente. Não restam dúvidas sobre quais condutas são proibidas. É crime qualquer comportamento da cadeia de produção do material pornográfico com crianças e adolescentes, incluindo a manutenção do material em dispositivo informático. No caso da Lei de Segurança Nacional, os tipos penais não reconhecem como crime a manutenção ou o armazenamento de material de incitação ou apologia, senão somente a incitação e apologia em si. Nesse sentido, a publicação e manutenção de vídeo com apologia e incitação ou ofensas à honra de alguém não configuram crimes permanentes, e sim crimes instantâneos, cujos efeitos podem perdurar no tempo e influenciar no cálculo da pena, em caso de condenação.

O flagrante somente seria possível atendendo às regras do Código de Processo Penal. De acordo com o art. 302, considera-se em flagrante delito quem está cometendo a infração penalacaba de cometê-laé perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração. A prisão foi efetuada horas depois da publicação dos vídeos, o que afasta, desde já, o requisito temporal das quatro hipóteses. O agente não estava praticando os verbos descritos nos tipos e a ele atribuídos, nem tinha acabado de praticá-los. Sequer havia consumação prolongada no tempo, como vimos acima, de crime permanente. Não sendo o caso de flagrante, não havia permissão jurídica para a “decretação” da prisão do parlamentar. A nosso juízo, portanto, o que permanece é a ilegalidade da prisão.

[1] DE BEM, Leonardo Schmitt; MARTINELLI, João Paulo. Direito penal, parte geral. Belo Horizonte: D´Plácido, 2021, p. 414.

[2] Idem, p. 414.

[3] DE BEM, Leonardo Schmitt; MARTINELLI, João Paulo. Direito penal, parte especial, crimes contra a pessoa. Belo Horizonte: D´Plácido, 2021, p. 74-75.

[4] Idem, p. 524.

Leia mais:

Entenda como identificar uma prisão ilegal e como agir diante disso


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