Crime e Política: lições trazidas por Alaor Leite ao debate
Crime e Política: lições trazidas por Alaor Leite ao debate
Peço vênia aos leitores para replicar na coluna desta semana alguns apontamentos que já havia lançado em meu perfil do Facebook. Sendo abertamente sincero o motivo pelo qual o faço é duplo: em primeiro lugar, os muitos compromissos da semana impediram a produção de um texto novo.
Em segundo lugar, o assunto sobre o qual teço os comentários abaixo são extremamente relevantes no atual cenário jurídico-político em que nos encontramos.
Alaor Leite é um acadêmico admirável. Aos que leem os seus textos e depois o conhecem pessoalmente fica a profunda sensação de uma disjunção.
Explico: a pouca idade parece não condizer com a sobriedade e qualidade das reflexões trazidas pelo mesmo. Não é à toa que Alaor é hoje orientando, em seu doutorado na Ludwig-Maximilians Universität (LMU), de Munique, Alemanha, de um dos maiores nomes do direito penal contemporâneo: Claus Roxin.
Alaor acaba de lançar, junto com Adriano Teixeira, a obra intitulada “Crime e Política”. Cumpre aqui destacar algumas das principais contribuições dos estudos que o autor tem trazido à baila, conforme expostos em sua palestra na VI Conferência Estadual da Advocacia, promovido pela OAB/PR.
As reflexões giram em torno dos crimes de corrupção, da discussão sobre a possibilidade e conveniência da criminalização do “caixa 2” e do financiamento irregular de partidos políticos.
O alargamento dos critérios de apreciação da tipicidade do delito de corrupção (ativa/passiva) decorre do seguinte desenvolvimento: o art. 333, que se ocupa da corrupção ativa, exigiu, desde sempre, a determinação de um ato de ofício. Já no dispositivo que trata da corrupção passiva (art. 317) não há tal exigência.
Porém, o STF, ao julgar a AP 465 (Fernando Collor), firmou entendimento de que a corrupção passiva prescindiria da mesma demonstração de vinculação da prática dos verbos-núcleo do tipo à determinação de um ato de ofício.
Num segundo momento, ao julgar a AP 470, o STF muda radicalmente de entendimento, entendendo que, para configuração da corrupção passiva, bastaria a constatação de um ato de ofício “potencial”.
Por último, o STF acabou por estender esta última compreensão, mais rígida, para averiguação da tipicidade nos casos de corrupção ativa, afirmando que a perfectibilização do seu conteúdo poderia ser aferida com base, também, em mero ato de ofício “potencial” (analogia proibida)
Esta expansão da compreensão conceitual de corrupção, aliada ao já vastíssimo rol de agentes ativos abarcados pelo conceito de “funcionário público” (art. 327 CP), permitiu ao Alaor a sóbria constatação de que não se pode falar em lacuna de punibilidade para crimes contra administração pública no Brasil.
Como proposta de superação desta dilatação, operada inclusive de forma ilegítima pelo judiciário, oferece Alaor a seguinte hipótese: revisão da analogia proibida, de modo a dar à leitura do tipo penal de corrupção, tanto na modalidade ativa quanto passiva, sua real dicção, acrescentando, se percebida a insuficiência destes para lidar com delitos típicos das relações políticas (compra de relacionamentos, lobby, etc.), um novo tipo penal, com um conteúdo de injusto específico, tendo como pressuposto a delimitação do sujeito ativo ligada à cargos/funções bem esclarecidos, conforme fizeram alguns países.
Dentro da configuração do nosso ordenamento, tal como se apresenta hoje, Alaor faz algumas observações que merecem destaque:
A mera manutenção de “caixa 2” (contabilidade paralela), por pessoa jurídicas de direito privado, não configurada como instituição financeira, não constitui delito tipificado pelo ordenamento penal brasileiro (e por nenhum outro). Justamente por isso temos sido constrangidos a, nas palavras de Alaor, “continuar, ruborizados, discutindo a anistia de um crime inexistente”.
A opção pela (futura) criminalização de “caixa 2” é bastante questionável, uma vez que a tipificação de um “estado de coisas” não condiz com elementos fundamentais do Estado Democrático de Direito.
O financiamento irregular de partidos políticos, que pressupõe, esse sim, um agir externo, ainda não é, em nosso ordenamento, crime por si só. Alguns países adotaram esta via de criminalização.
A análise de legitimidade, necessidade, conveniência, oportunidade e consequências que, conforme TAVARES (2012:48) bem aponta, são pressupostos mínimos para qualquer ato legislativo, muito mais no âmbito penal, não parece ter sido esboçada suficientemente em nosso país para que esta tipificação seja hoje recomendável. As “10 medidas” (PL4850/16) passam bem ao largo desta verificação.
Uma última preocupação que tem sido objeto de estudos do Alaor e que foi brevemente mencionada: a presunção de autoria no caso de dirigentes de empresas. Despiciendo comentar qualquer coisa neste respeito.
Qualquer sugestão neste sentido precisa ser denunciada severamente com um direito penal de autor, calcado na responsabilidade penal objetiva, incompatível com um direito penal democrático e constitucional.
REFERÊNCIAS
TAVARES, Juarez. Teoria dos Crimes Omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012.
LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano. (orgs.) Crime e Política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2017.