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A mudança de competência dos crimes dolosos contra vida para a Justiça Militar

A mudança de competência dos crimes dolosos contra vida para a Justiça Militar

Na última segunda-feira (16), entrou em vigor a Lei 13.491/2017, sancionada pelo presidente Michel Temer. Trata-se de projeto de Lei Complementar proposto na Câmara dos Deputados em 2016 e aprovado pelo Congresso Nacional.

Em resumo, a nova lei amplia a competência da Justiça Militar da União, estabelecendo foro privilegiado para militares que cometerem crimes dolosos contra a vida de civis durante o exercício de suas atribuições.

Até o advento da referida lei, a competência para processar e julgar estes crimes era da Justiça Criminal comum. O texto sancionado por Temer foi idealizado para o período das Olimpíadas.

Não obstante, o presidente vetou justamente o dispositivo que limitava a aplicação da lei aos fatos ocorridos até 31 de dezembro de 2016. Daí porque considera-se a mudança como verdadeira ampliação da competência da Justiça Militar.

Segundo a mensagem de veto, o uso recorrente das Forças Armadas nos conflitos nas ações de segurança pública justificaria a existência de uma norma permanente que regule a questão.

O Ministério Público Federal se posicionou contra o texto. Para o órgão, a medida seria “inconstitucional” por extrapolar a competência estabelecida na Constituição Federal, além de contrariar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e posições firmadas pela Comissão de Direitos Humanos da Nações Unidas, que fixam a atribuição da Justiça Militar apenas para processar e julgar casos que envolvam ofensa às instituições propriamente militares.

Mas, enfim, qual o problema de levar à Justiça Militar os crimes dolosos praticados por seus jurisdicionados? Se os fatos serão processados e julgados por meio de devido processo legal, com direito a ampla defesa e contraditório, o que há de errado?

E, mais, partindo-se da premissa que o militar feriu ou matou em trabalho, não se estaria diante da presunção de um ato destinado ao bem maior da segurança pública?

Bom. Esta última seria a mais grave das assertivas, o que me obriga a responde-la de pronto: não. Não se presume que o ato, ao menos em tese, criminoso do militar representaria uma espécie de “custo-benefício” à sociedade, que validaria seus excessos institucionais.

Da mesma maneira, despontam questões de ordem na persecução de crimes dolosos contra a vida de civis pela própria Justiça Militar, sendo um deles, inclusive e especialmente, a parcialidade dos julgadores, indubitavelmente capaz de abalar os procedimentos do devido processo legal.

É como veremos já.

Comecemos pela composição da Justiça Militar: Superior Tribunal Militar (STM) e os Tribunais e Juízes Militares.

O Superior Tribunal Militar é composto por quinze ministros nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a indicação pelo Senado Federal, sendo eles: três dentre oficiais-generais da Marinha, quatro dentre oficiais-generais do Exército, três dentre oficiais-generais da Aeronáutica, todos da ativa e do posto mais elevado da carreira, e cinco dentre civis.

Vale mencionar que dois dos ministros civis serão escolhidos dentre juízes auditores e membros do Ministério Público da Justiça Militar.

Traduzindo: dos 15 ministros do STM, 13, de algum modo, fazem parte do universo militar.

Fazer parte de um universo, seja qual for ele, imprime características nas pessoas. Ao menos para mim, é bastante claro que nossas ocupações nos moldam. O que será que funcionar dentro do universo militar faz com as pessoas?

Na visão da ONU, julgamentos por tribunais militares de crimes cometidos por seus pares contra civis violam direitos humanos e não representam um procedimento parcial, ao passo que não são conduzidos por “autoridades judiciais não vinculadas à hierarquia de comando das próprias forças de segurança”.

Caso a imparcialidade não seja suficientemente valiosa para você, pense na sistemática do militar que, a mando de superior, comete homicídio de civil suspeito, por exemplo. Agora considere que este civil suspeito era apenas um transeunte desavisado. Lugar errado, hora errada.

O militar julgado nessas condições será processado e julgado com respaldo nos princípios naturais ao militarismo, como a disciplina e a hierarquia, o que potencialmente levará à sua absolvição, já que, enfim, ele só estava cumprindo ordens.

Como não poderia deixar de ser, antes ainda da sanção presidencial, o Exército se manifestou favorável à mudança, argumentando que o julgamento do militar pela Justiça Comum “poderia trazer prejuízos para sua carreira profissional”.

As razões para problematizar a lei são inúmeras e o Estado, que ousou levar o sobrenome Democrático de Direito, a cada dia se parece mais com algum regime totalitário, onde se apura o que convém, negligenciando os direitos do suspeito pelas mãos da mídia, e se varre para debaixo do tapete os escusos meios que justificam – ao menos para alguns – os fins.

De tudo, o notório é que a referida mudança desloca a parcialidade do devido processo legal ao qual deveriam ser submetidos estes fatos, em total contramão ao resto do mundo.

A mudança é, na pele, verdadeiro retrocesso, que prejudica a democracia e afasta a responsabilização daqueles que, há tempos imemoriais, estão autorizados pelo Estado a escolher quais vidas têm valor.

Amanda da Mata

Pós-graduanda em Direito Penal Econômico. Advogada.

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