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Crimes eleitorais: transporte irregular de eleitor


Por Bruno Milanez


Nas últimas colunas, tratamos de aspectos processuais dos crimes eleitorais, abordando as regras do rito especial para o processo e julgamento dos ilícitos eleitorais. Nas próximas colunas, trataremos dos crimes eleitorais em espécie, iniciando pelo crime de transporte irregular de eleitores. Este crime está tipificado na conjugação do art. 10, c.c. art. 11, ambos da Lei 6.091/74:

Art. 10. É vedado aos candidatos ou órgãos partidários, ou a qualquer pessoa, o fornecimento de transporte ou refeições aos eleitores da zona urbana.”

Art. 11. Constitui crime eleitoral: (…) III – descumprir a proibição dos artigos 5º, 8º e 10º.

Pena: reclusão de quatro a seis anos e pagamento de 200 a 300 dias-multa (art. 302 do Código Eleitoral).

O crime de transporte irregular de eleitor, tipificado no art. 11, III, da Lei 6.091/74, tem por objetividade jurídica a tutela da liberdade de voto. Tendo-se em consideração as penas abstratamente cominadas ao tipo penal, não são cabíveis os institutos despenalizadores da transação penal e da suspensão condicional do processo.

Trata-se de crime comum, não sendo exigível qualidade especial do sujeito ativo para a perfectibilização do crime. Podem praticar a conduta não apenas quem transporta o eleitor de forma irregular, mas igualmente quem cede o veículo para este propósito, quem contrata o transporte, etc. Na casuística, reconheceu-se a prática do delito pelo intermediário da contratação do transporte:

“O transporte particular e coletivo de eleitores no dia das eleições configura crime eleitoral quando tem por fim interferir na vontade do eleitor. Incorre nas penas desse crime não só a pessoa que diretamente efetuou o transporte, mas também a pessoa que a contratou e a que intermediou a contratação.” (TRE/PR – REL 96, Rel. Rui Portugal Bacellar Filho, DJ 30.6.2004)

Em que pese o tipo penal não exemplificar – ao menos para possibilitar a aplicação analógica – situações configuradoras do transporte irregular, a regra do art. 5º, da Lei 6.091/74 – repetida no art. 8º, da Resolução 9.641/74, do TSE – estabelece circunstâncias nas quais está excluída a irregularidade do transporte de eleitor:

Art. 5º. Nenhum veículo ou embarcação poderá fazer transporte de eleitores desde o dia anterior até o posterior à eleição, salvo:

I – a serviço da Justiça Eleitoral;

II – coletivos de linhas regulares e não fretados;

III – de uso individual do proprietário, para o exercício do próprio voto e dos membros da sua família;

IV – o serviço normal, sem finalidade eleitoral, de veículos de aluguel não atingidos pela requisição de que trata o art. 2º.

Há precedentes reconhecendo se tratar de crime formal, enquanto outros asseveram se cuidar de crime de mera conduta. Tecnicamente, a segunda classificação parece ser a mais acertada. Isso porque os delitos formais não exigem alteração no mundo naturalístico para a sua consumação, o que não ocorre na hipótese do art. 11, III, da Lei 6.091/64, que exige o efetivo transporte irregular do eleitor – e, portanto, alteração no mundo concreto – para restar consumado.

Por outro lado, nas hipóteses de crime de mera conduta, o tipo incriminador descreve a conduta que, praticada, implica em consumação do delito, independente de qualquer resultado (PACELLI; CALLEGARI, 2016, p. 203). É esse o caso do crime de transporte irregular de eleitor, que para restar consumado exige a ocorrência do transporte com o objetivo de vantagem eleitoral. O delito estará consumado ainda que o voto no candidato – grupo de candidatos ou partido – não se verifique:

“O crime de transporte irregular de eleitores é crime de mera conduta, ou seja, é aquele que sequer descreve um resultado e, em consequência, o tipo já se contenta com a mera intenção consciente da atividade do sujeito.” (TRE/PA – REL 305, Rel. Ezilda Pastana Mutran, DJE 26.9.2013)

Como todo e qualquer crime eleitoral, somente se consuma a título doloso. O preceito secundário do tipo penal em análise remete expressamente à regra do art. 302, do CE, que tipifica a conduta de “promover, no dia da eleição, com o fim de impedir, embaraçar ou fraudar o exercício do voto a concentração de eleitores, sob qualquer forma, inclusive o fornecimento gratuito de alimento e transporte coletivo.”

Em face da remissão expressa a esse dispositivo legal, tem-se entendido que o crime de transporte irregular de eleitor exige, além do dolo genérico de transportar o eleitor, o dolo específico – ou especial fim de agir –, consubstanciado na intenção deliberada de impedir, embaraçar ou fraudar o exercício do voto e, deste modo, obter vantagem eleitoral (votos) mediante aliciamento do eleitor.

Em outros termos, “para que fique caracterizado o crime de transporte de eleitores é necessário que exista dolo específico, ou seja, que o agente tenha vontade de corromper eleitores em prol de partido ou candidato” (TRE/MS – REL 66, Rel. André Luiz Borges Netto, DJ 2.5.2006). O mero transporte do eleitor, desacompanhado de elementos que evidenciem a fim específico de aliciamento para obtenção de vantagem eleitoral é conduta atípica:

“Para caracterização do delito previsto no art. art. 11, inciso III, da Lei 6.091/74 devem estar configurados dois requisitos: a conduta propriamente dita, materializada no transporte de eleitores; e o elemento subjetivo do tipo, qual seja, vontade de aliciar eleitores. 2 – Observa-se dos autos que os eleitores foram transportados apenas com o fim precípuo de justificar o voto, eis que residentes em outro domicilio eleitoral, e não para votar no candidato apoiado pelo segundo denunciado.” (TRE/ES – REL 49, Rel. Arnoldo Limonge, DOE 4.11.2009)

“Além disso, o transporte de eleitores, em si mesmo, não configura o crime eleitoral previsto no art. 11, III, da Lei nº 6.091/74; portanto, ainda que se entenda comprovado ter sido o réu o responsável pelo fretamento do ônibus que realizou o transporte, seria necessária a prova efetiva do aliciamento dos eleitores com o objetivo de fraudar-lhes o voto livre, ausente no presente caso.” (TRE/PB – AP 10.420, Rel. Helena Delgado Ramos Fialho Moreira, Ac. 625, de 4.10.2011)

Estando o elemento subjetivo especial do delito vinculado ao aliciamento do eleitor para obter vantagem eleitoral, se o transporte do eleitor não estiver vinculado ao propósito de votação, a conduta é atípica. Na casuística, entendeu-se que “não se configura crime eleitoral o simples transporte de pessoas no dia da eleição, sem que esteja devidamente provado que os transportados são eleitores que estão se deslocando para este fim” (TRE/PB – PROC. 2.908, Rel. José Guedes Cavalcanti Neto, DJ 7.8.2004).

Tratando-se o especial fim de agir condição sine qua non para a configuração do crime de transporte irregular de eleitor, é necessário, por força da regra do art. 41, do CPP, que a inicial acusatória promova descrição fática pormenorizada dos fatos que, em tese, indicariam o fim especial de aliciamento do eleitor para obtenção da vantagem eleitoral, sob pena de inépcia da denúncia (ou queixa substitutiva):

“(…) no direito processual penal não se é permitido o oferecimento de denúncia com base apenas em presunções, exigindo-se, obrigatoriamente, a presença de todos os elementos do tipo penal, objetivos e subjetivos, no caso, é indispensável constar na denúncia a descrição de que o transporte gratuito no dia da eleição tinha como finalidade explícita de aliciar eleitores para determinado candidato ou partido político.” (TRE/PR – RHC 191, Rel. Irajá Romeo Hilgenberg Prestes Mattar, DJ 7.12.2009).

Poder-se-ia então questionar: quais circunstâncias externas indicariam o propósito de transporte eleitoral com o fim específico de aliciar o eleitor para a obtenção da referida vantagem eleitoral? Sem pretensão de esgotar as hipóteses, é possível colher da casuística os seguintes exemplos:

(a) A gratuidade do transporte, embora não seja indício decisivo, pode servir como elemento do aliciamento de eleitor: “A gratuidade do transporte não constitui elementar do tipo previsto no artigo 11 da Lei Federal nº 6.091/74, servindo apenas como indício do aliciamento.” (TRE/DF – PROC. 432, Rel. Amaro Carlos da Rocha Senna, DJ 29.4.2002);

(b) Transporte eleitoral e propaganda do candidato: “Comprovada a execução de atos com o intuito de obter o voto do eleitor transportado, utilizando-se de propaganda, pedido ou qualquer outro meio que possa influenciar a vontade do eleitor para votar em determinado candidato, se aperfeiçoa o tipo penal e é de rigor a condenação do infrator.” (TRE/PR – PROC. 158, Rel. Regina Helena Afonso de Oliveira Portes, DJ 13.5.2009);

(c) Entrega de ‘santinho’ do candidato ao eleitor transportado: “Oferecimento de transporte até o local de votação. Casal de eleitores indígenas. (…) Interesse de obter voto para os candidatos por ele apoiados. Apreensão de bandeira e outros materiais de propaganda eleitoral. Entrega de santinha a um dos caroneiros. Robusto caderno probatório. Acerto da decisão de primeiro grau.” (TRE/MT – REL 34.538, Rel. Lídio Modesto da Silva Filho, DEJE 5.10.2015)

(d) Pedido expresso de voto no trajeto: “Caracteriza a prática do delito de transporte irregular de eleitores a promoção de viagem em cujo trajeto, encerrado no dia do pleito, houve distribuição de propaganda político-partidária aos passageiros, coleta do número do título eleitoral e pedido expresso de votos. Manutenção do juízo de condenação.” (TRE/RS – REL 54, Rel. Lúcia Liebling Kopittke, DEJERS 18.5.2010);

(e) Transporte de eleitores desconhecidos do candidato em veículo de sua cônjuge: “Configura-se o crime de transporte ilegal de eleitores o transporte de pessoas efetuado em veículo de propriedade do marido de candidata, realizado por empregado deste, no dia da eleição, principalmente, quando as circunstâncias denotam que houve efetivamente a tentativa de descaracterizar a prática do ilícito, com a fuga dos eleitores transportados do local, sendo suficiente a prova de que tais eleitores foram aliciados, uma vez que estavam portando “botons” da candidata.” (TRE/RS – REL 164.764, Rel. Sidney Duarte Barbosa, DJE/TRE-RO 5.7.2011)

(f) Transporte de eleitor em veículo com propaganda do candidato, mesmo sem entregá-la ao eleitor transportado: “Transporte irregular de eleitores. Flagrante. (…) Apreensão de material de propaganda. Irrelevância da ausência de comprovação quanto a formal pedido de votos. (…) Irrelevante é a ausência de prova direta quanto à entrega de material de propaganda e ao pedido de votos. É suficiente constatar a efetiva prática de conduta apta a macular os padrões éticos e igualitários na competição eleitoral, consistente em qualquer influência espúria sobre a vontade dos eleitores.” (TRE/RS – ApCrim 58, Rel. Francisco Martins Ferreira, DJ 19.4.2007)

Por outro lado, o delito não se configura na seguinte hipótese:

(a) Transporte de parentes e/ou vizinhos: “Não caracterizado o delito de transporte irregular de eleitores, pois ausente a comprovação do dolo específico para a cooptação de votos. Determinação judicial suspendendo o serviço de táxi e de transporte coletivo no município no dia do pleito. Prática comum em pequenas cidades o oferecimento de caronas entre familiares, vizinhos e conhecidos. Circunstâncias que tornam duvidoso o fim eleitoral da conduta.” (TRE/RS – REL 292.393, Rel. Ingo Wolfgang Sarlet, DEJERS 8.9.2014)

Na próxima coluna, seguiremos tratando de outros aspectos do crime de transporte irregular de eleitor!


REFERÊNCIAS

PACELLI, Eugenio; CALLEGARI, André. Manual de Direito Penal: parte geral. 2. São Paulo: Atlas, 2016.

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Bruno Milanez

Doutor e Mestre em Direito Processual Penal. Professor. Advogado.

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