A corrupção deve ser incluída no rol de crimes hediondos?
A corrupção deve ser incluída no rol de crimes hediondos? O êxito da Operação Lava Jato – sob o aspecto da severa punição de corruptos e corruptores, dentre outros crimes de colarinho branco, bem como sob o manto da recuperação de valores milionários aos cofres públicos -, possibilitou a setores do MPF que alavancassem verdadeira campanha publicitária em torno daquilo que se convencionou denominar de “10 Medidas Contra a Corrupção“.
Essa campanha chegou ao Legislativo em 29.3.2016, tendo sido apresentada sob a forma do Projeto de Lei nº 4.850/2016, atualmente em discussão em nosso Parlamento.
Desde o momento em que as 10 Medidas foram publicizadas pelo MPF, o que se vê, majoritariamente, são posições extremadas, havendo os que são radicalmente contra e os que são integralmente favoráveis ao pacote anticorrupção. É bem verdade que, na maioria dos casos, os apoiadores ou críticos delas sequer tiveram a oportunidade de ler – e, mais, de compreender – o que lá está posto. Em outras palavras, a maioria da população confia cegamente na palavra de algum especialista no acerto ou desacerto do que se propõe.
É por essa razão que o debate público e desapaixonado a respeito das 10 Medidas deve ser travado de forma séria, como o fez recentemente o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) ao encaminhar ao Congresso Nacional uma nota técnica sobre o tema (clique AQUI para ler) .
Partindo dessas premissas, passa-se a uma breve análise da Proposta nº 6, que pretende aumentar as penas abstratas cominadas à corrupção, bem como inserir a corrupção no rol dos crimes hediondos.
Segundo a justificativa da Proposta nº 6 do Pacote Anticorrupção (doravante “justificativa”), deflui-se que a corrupção, nos moldes atuais (arts. 317 e 333, ambos do Código Penal) seria um crime de baixo risco, tendo-se em vista as penas privativas de liberdade abstratamente cominadas nos respectivos tipos penais (que variam de 2 a 12 anos de reclusão). Ainda segundo a justificativa, a pena mínima desse crime favorece a prescrição, a substituição por penas restritivas de direitos ou fixação de regime aberto para cumprimento de pena (em hipótese de condenação), “o qual, em muitos casos (…) significa pena nenhuma“.
Também pela justificativa, “o parâmetro de pena razoável nesses casos deve ser o crime de homicídio, cuja pena, quando simples, é de seis a vinte anos, e, quando qualificado, é de doze a trinta anos. Outro parâmetro razoável, para corrupção de grande magnitude, é o crime de latrocínio, que tem pena de vinte a trinta anos, e o delito de extorsão qualificada pela morte, cuja pena é de vinte a trinta anos.”
Assim, embasados no Manual de Orientações de Comissão de Penas dos Estados Unidos (2014 USSC Guidelines Manual), sugerem que as penas para esse crime possam variar de 4 (quatro) a 25 (vinte e cinco) anos de reclusão, pelos seguintes parâmetros extraídos da proposta:
A inclusão da corrupção no rol de crimes hediondos não seria irrestrita:
Como são crimes que possuem motivação e consequências econômicas, é natural a inserção de um parâmetro econômico para a configuração de sua hediondez. Pela proposta, crimes como corrupção e peculato passam a ser hediondos quando o valor envolvido supera cem salários-mínimos, o que em valores atuais representa R$ 78.800,00. Quanto maiores os valores econômicos, maior o dano social, até um ponto em que o prejuízo social pode ser equiparado ao de outros crimes extremamente graves, que são delitos hediondos. Crimes como corrupção e peculato, quando envolvem cem vezes o valor que é, não raro, tudo que pessoas têm para passar o mês – um salário-mínimo – pode ser, sem dúvidas, caracterizado como hediondo, ainda mais dentro de um contexto de compromisso do Estado em combater a corrupção.
Por fim, a justificativa se encerra com a crença de que o direito penal é o caminho para mudar a realidade do País:
é extremamente raro que autores de crimes de colarinho branco sejam punidos e, quando punidos, que cumpram pena em regime fechado, mesmo quando os crimes são extremamente graves. A perspectiva de pena mais grave, e de condições mais gravosas de cumprimento de pena, será certamente um fator de desestímulo a tais práticas criminosas. No cenário atual, em que grandes esquemas de corrupção são descobertos, é preciso adotar medidas para mudar a realidade.
Não transcrevi a integralidade da justificativa – que está acessível ao público na internet – porém acredito que tenha exposto os principais fundamentos que a embasam e que podem ser assim sumariados: (a) as leis penais brasileiras sobre corrupção fazem com que esse crime seja vantajoso, ou porque passam impunes ou porque, quando são punidos, as penas são brandas; (b) como solução, propõe-se um severo aumento das penas para esses ilícitos penais, bem como sua inclusão no catálogo legal de crimes hediondos.
As ponderações que farei podem ser resumidas nas seguintes indagações: (a) a impunidade da corrupção decorre da baixa pena cominada a esses crimes? (b) a legislação penal atualmente vigente impede a aplicação de penas rígidas em hipóteses graves de corrupção? e; (c) incluir a corrupção no rol de crimes hediondos é uma opção legislativa adequada?
Não pretendo trazer respostas prontas e acabadas, as quais talvez não possua. O objetivo é mais modesto, de apenas compartilhar algumas dúvidas a respeito da eficácia da proposta.
Primeira Pergunta: a impunidade da corrupção decorre do baixa pena cominadas a esses crimes?
Se a premissa e as conclusões da proposta são corretas, uma possível forma de verificação consiste em analisar as penas previstas em países com baixos índices de corrupção: se forem altas, a proposta pode estar caminhando para o acerto; em hipótese contrária, talvez a proposta deva ser repensada.O que se compreende a partir da justificativas é que o custo do crime de corrupção estaria sobremaneira vinculado às modestas penas privativas de liberdade previstas para os tipos penais de corrupção ativa e passiva. Há, aqui, uma crença na efetividade da função de prevenção geral negativa, defendendo-se que o aumento das penas da corrupção implicaria em aumento do efeito intimidatório nas pessoas e, consequentemente, a diminuição das práticas corruptas. Em equação matemática: quanto mais pena, menos corrupção.
O critério de comparação com outros países, aqui proposto, vai inclusive no mesmo sentido da justificativa: “o aumento da pena proporcionalmente ao dano causado ou à vantagem ilícita auferida é adotada em outros países, inclusive com democracias mais avançadas e instituições mais amadurecidas e consolidadas, como, por exemplo, os Estados Unidos da América”.
Nesse aspecto, talvez a deficiência da proposta tenha sido a de não trazer critérios de outros países, de forma a ampliar ainda mais o debate e possibilitar reflexão mais aprofundada.
Assim, para ampliar os horizontes, interessante analisar a experiência penal de outros Países, mesmo porque segundo pesquisas de organismos internacionais, existem aproximadamente vinte nações com índices de corrupção inferiores aos dos Estados Unidos da América (os índices internacionais de percepção da corrupção, mensurados desde o ano de 1995 pelo Transparency Internacional, podem ser consultados AQUI).
Um dos países mundialmente reconhecido pelos baixos índices de corrupção é a Finlândia. O Código Penal Finlandês (clique AQUI para versão em inglês: ) pune a corrupção nos termos da Seções 13 e 14, do Capítulo 16, que versa sobre os Crimes Contra Autoridades Públicas (Ofences Against the Public Authorities). Na sistemática do CP Finlandês, há quatro modalidades de corrupção: (a) corrupção (Section 13 – giving of bribes); (b) corrupção agravada (Section 14 – aggravated giving of bribes); (c) corrupção de membros do Parlamento (Section 14(a) – giving of a bribes to a member of Parliament) e; (d) corrupção agravada de membros do Parlamento (Section 14(b) – aggravated giving of bribes to a member of Parliament). A pena das formas simples é de no máximo 2 anos de prisão ou multa. A pena das formas agravadas varia de 4 meses a 4 anos de prisão
Na Alemanha (clique AQUI para versão em espanhol do CP Alemão), os crimes de corrupção aparecem tratados na Seção Trigésima (fatos puníveis no exercício do cargo público), contemplando os §§ 331 a 335, do CP Alemão. Em situações bastante excepcionais, a pena pode variar de 1 a 10 anos – como no § 332(2) – porém, na extragrande maioria dos casos, a pena máxima é de 3 ou 5 anos, admitindo-se até mesmo aplicação exclusiva de pena pecuniária.
Na Suécia (clique AQUI para versão em inglês), a corrupção vem tratada na Section 7, Chapter 17 (crimes against public activity) e na Section 2, Chapter 20 (Misuse of Office), do CP Sueco. Na primeira hipótese, a pena máxima é de 2 anos. No segundo caso, a pena máxima é de 2 anos e, se o crime for considerado grave, a pena máxima será de 6 anos.
No Japão (clique AQUI para versão em inglês: ), as diversas formas de corrupção vêm disciplinadas nos arts. 197 e 198, do CP Japonês, sendo a pena máxima para o crime a privação da liberdade de no máximo 5 anos.
Em Portugal (clique AQUI), os crimes de corrupção são tratados nos arts. 372 a 374, do CP Português. A pena máxima é de 8 anos de privação de liberdade, para os casos de corrupção passiva para ato ilícito (art. 372.1).
Em França (clique AQUI para versão em espanhol), os crimes de corrupção passiva (art. 432-11) e ativa (art. art. 433-1) possuem penas máximas não superiores a 10 anos.
Na Argentina (clique AQUI), o crime de corrupção está disciplinados nos arts. 256 a 259, do CP Argentino. Análise desses dispositivos revela que as maiores penas são para hipóteses de corrupção envolvendo magistrados e membros do Ministério Público (pena máxima de 12 anos), sendo que nos casos que não envolvem juízes e promotores, a pena máxima é de 6 anos.
Na Itália (clique AQUI para versão em Italiano), o crime de corrupção vem disciplinado nas regras dos art. 318 a 321, do CP Italiano. As penas máximas são de 3 e 5 anos, respectivamente nos arts. 318 (corruzione per un atto d’ufficio) e 319 (corruzione per un atto contrario ai doveri d’ufficio). As penas mais elevadas para o crime de corrupção na Itália se referem à corruzione in atti giudiziari (art. 319.ter, do CP), em que as penas podem chegar a 12 anos (se do fato resulta injusta condenação de alguém a pena não superior a 5 anos) ou 20 anos (se do fato resulta injusta condenação de alguém a pena superior a 5 anos).
Como se vê, para além de uma análise vinculada única e exclusivamente ao modelo estadunidense de justiça criminal – abordando-se inclusive Países com índices de corrupção inferiores aos dos EUA – o que se tem é que a pena abstratamente cominada ao crime de corrupção não parece ser um argumento adequado para justificar o aumento exacerbado das penas abstratamente cominadas aos tipos dos arts. 317 e 333, do CP Brasileiro.
Com efeito, a pena máxima de 12 (doze) anos para a corrupção, existente em nosso ordenamento, em comparação face a diversos outros países com “democracia mais avançada e instituições mais amadurecidas e consolidadas” – para usar a gramática da justificativa – revela que estamos muito “acima da média” no quesito pena abstrata.
Vincular o alto ou baixo custo do crime de corrupção à pena abstrata cominada ao tipo penal parece buscar resolver o problema começando pelo telhado, olvidando-se talvez que as disfuncionalidades do direito penal sejam estruturais/sistêmicas e não vinculadas à quantidade de pena prevista em lei.
A propósito, estudos de sociologia criminal apontam que o efeito intimidatório do direito penal – ainda que seja limitado – está muito mais vinculado à certeza da punição do que à magnitude das penas. Em outras palavras: não é necessariamente a quantidade de pena, mas a certeza da punição (ainda que com penas menores) que poderá ter algum efeito dissuasório.
Um excelente exemplo para se ilustrar o que se afirma consiste no crime de homicídio, que em sua modalidade qualificada possui pena elevadíssima que varia de 12 a 30 anos de reclusão. Fosse correta a lógica que permeia a justificativa, os índices de homicídio no Brasil seriam baixos, pois quanto mais pena, menos crime.
Contudo, estudos empíricos evidenciam que a realidade é mais complexa do que uma análise de penas abstratas. Os índices de homicídio praticados no Brasil aumentam vertiginosamente e, por outro lado, a punição concreta desses crimes varia entre míseros 5 a 8% (clique AQUI para acessar os dados), revelando cifra negra que pode chegar a 95%. Em linguagem simples: de cada 100 homicídios ocorridos no Brasil, aproximadamente 95 (noventa e cinco) ficam impunes, em que pese a pena abstrata bastante elevada cominada ao tipo penal.
Portanto, a experiência do direito comparado – e mesmo a experiência do direito interno em relação a crimes com penas bastante elevadas – sugere que um aumento irracional da pena para a corrupção, tal qual se propõe nas 10 Medidas, não fará com que esse delito passe a ser de baixo custo.
É necessário revisitar o sistema de justiça criminal como um todo, talvez até mesmo reduzindo penas abstratamente cominadas aos tipos penais, porém garantindo-se maior efetividade do processo de execução penal. Valem aqui as recentes considerações do Ministro Roberto Barroso: “há, de fato, inúmeras falhas no sistema que merecem atenção e reparo. Mas não para o fim de multiplicar as tipificações ou exacerbar as penas. Não é este o caminho. O direito penal, em uma sociedade como a brasileira, por motivos diversos, deve ser moderado.” – g.n. – (STF – EP 2-QO, Rel. Min. Roberto Barroso, decisão monocrática).
Continuamos no próximo artigo, analisando as seguintes perguntas: (b) a legislação penal atualmente vigente impede a aplicação de penas rígidas em hipóteses graves de corrupção? e; (c) incluir a corrupção no rol de crimes hediondos é uma opção legislativa adequada? crimes hediondos crimes hediondos crimes hediondos crimes hediondos crimes hediondos crimes hediondos crimes hediondos crimes hediondos crimes hediondos