Crimes imprescritíveis: o homem do presente e os erros do passado
Crimes imprescritíveis: o homem do presente e os erros do passado
A Constituição da República Federativa do Brasil (1988) dispõe serem imprescritíveis a prática do racismo (art. 5º, inciso XLII) e a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLIV). O mote da imprescritibilidade, nessas situações, é assegurar a aplicação da lei penal e evitar o esvaziamento do poder punitivo pelo decurso do tempo. Traz-se à luz a indagação seguinte: a punição é um fim em si mesma?
Ao tratar com a imprescritibilidade, defrontamos dois problemas de ordem filosófica, muito próprios ao campo da política criminal, que colocam em xeque a idoneidade do conceito de delito imprescritível. De início, retomemos as questões imprimidas por L. Ferrajoli: punir por qual motivo? quando? como? (FERRAJOLI, 2014, p. 234-235).
Tais questionamentos apresentam implicações endo e exoprocessuais. No âmbito do processo, responde-se que a persecução penal há que estar firmada na cognição dos fatos e recognição do direito. Deve-se punir quando o infrator houver sido julgado responsável pela prática de conduta formalmente e materialmente típica, ilícita e culpável, após escorreito trâmite burocrático, conduzido em respeito ao contraditório, possibilitando-se o exercício da defesa, publicizando-se os atos processuais, tudo sob critérios de legalidade estrita e jurisdicionalidade estrita.
Na seara das políticas criminais, investigam-se as funcionalidades enunciadas e realizadas para o sistema de justiça, ao fim de estabelecer, notadamente nas esferas executiva e legislativa, estratégias adequadas ao enfrentamento do crime. Para os fins visados, pergunta-se: a) os delitos imprescritíveis atendem às finalidades da pena?; b) pode ser o homem do presente responsabilizado pelos atos do homem do passado?
Sobre o primeiro questionamento, as funções do direito penal são objeto de vetusto debate estabelecido entre escolas filosóficas, sociológicas e criminológicas, inserido, igualmente, no campo dogmático e dos estudos político-criminais.
Afinal, o que se busca atingir pelas vias do Sistema de Justiça? a reparação do dano provocado? o esclarecimento da verdade? a restauração do anterior estado de coisas? a prevenção da delinquência? o castigo do ofensor? a educação do indivíduo e da sociedade? a reafirmação de uma norma de conduta? a comunicação de necessidades entre os atores sociais?
Antes de fornecer uma resposta, colacionamos recorte da quase poética construção de Tarde (1924, p. 90):
Em lugar de quebrantar ou lançar para longe o ser nocivo, convém, tanto quanto possível, melhorá-lo, utilizá-lo, transformar o obstáculo em instrumento, o demolidor em pedreiro. Mas para isso, convenho, é necessário apelar aos homens devotados, ou, ao menos, não entravar em nada sua livre iniciativa.
A despeito das demais alternativas, assinaladas por autores de alto gabarito, respeitando-se também os protestos de quem possa pensar diferentemente, entendemos que o Direito Penal é elemento garantidor e, como tal, precisa buscar a integração da sociedade, a sociabilidade, ou melhor, a “paz social”.
Nesse caminho, Claus Roxin (2000, p. 31) leciona que o direito penal moderno tem por objetivo a melhor conformação social possível, conciliando-se a necessidade de prevenção dos delitos com a proteção dos direitos do infrator, inadmitidas intervenções estatais despropositadas. Em suas palavras, “a melhor política criminal consiste em conciliar a melhor forma possível de prevenção geral, a prevenção especial orientada para a integração da sociedade e a limitação das penas em um Estado de Direito”. (ibid, p. 34)
Roxin articula que, do ponto de vista político-criminal, indispensável é conceber uma dupla limitação ao poder de punir, orientado não a retribuir, mas para evitar o cometimento de delitos futuros. As limitações de que se fala constituem-se da culpabilidade do infrator e da legitimação preventiva da pena. Dito de outro modo, para se falar em responsabilidade, não é bastante a prática de conduta típica, ilícita e culpável, pois se exige, ainda, seja demonstrada a necessidade da pena, no seu aspecto preventivo. (ROXIN, 2000, p. 70-72)
A par dessa percepção, no nosso entender, os crimes imprescritíveis, analisados do plano abstrato, não atendem a referidos critérios, porquanto inviável afirmar, sem o exame concreto e individualizado da situação do infrator, que, passadas três ou quatro décadas, a punição será ainda necessária para evitar a prática de delitos futuros.
Sobre o segundo questionamento, estaria o homem do presente intrinsecamente vinculado ao comportamento do homem do passado? Gabriel de Tarde, ao tratar com esse tema, firmou a responsabilidade criminal na identidade pessoal e na semelhança social. O primeiro desses conceitos é que nos interessa.
Tarde argumenta que, em todos os tempos, julgou-se o sujeito responsável por um fato porque era ele, e não outro, o autor desse fato, de forma que a responsabilidade é sobretudo uma questão de identidade. Bevilaqua explicar que a identidade não é senão a permanência de tendências fundamentais do indivíduo, ou a consonância entre os estados mentais presentes e os passados. O indivíduo que praticou o ato e o que sofre as suas consequências há que ser o mesmo. (BEVILAQUA, 1896, p. 36-39).
Embora a tessitura da teoria de Tarde seja outra, muito mais apropriada ao seu tempo, e as suas conclusões não conduzam, por via direta, aos objetivos aqui explorados, ao menos, trouxe ela à luz os questionamentos decalcados do título deste artigo: haveria identidade pessoal entre o sujeito que comete o delito e o que, nos rigores penais, por ele responde 30, 40 ou 50 anos depois? A punição tardia é eficiente para reprimir o exemplo negativo e evitar a imitação? No fim e ao cabo, embarcamos no vetusto e insuperável debate acerca das funcionalidades da pena e, aliás, do próprio Direito Penal.
REFERÊNCIAS
BEVILAQUA, Clóvis. Criminologia e Direito Penal. Bahia: Editor Magalhães, 1896.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
ROXIN, Claus. La Evolución de La Política Criminal, el Derecho Penal y el Processo Penal.Valencia: Tirant lo Blanch, 2000.
TARDE, Gabriel. A Criminalidade Comparada. 8.ed. Paris: Librairie Félix Alcan, 1924.
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