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Criminal compliance e a pervertida “descentralização” da persecução penal

Criminal compliance e a pervertida “descentralização” da persecução penal

O compliance, tema conhecido de estudos relacionados à gestão de empresas, recentemente ganhou contornos próprios e assumiu posição de destaque no Direito Penal brasileiro.

Como programa empresarial, o compliance trata-se da adoção de condutas que buscam o cumprimento das normas atinentes a determinada área de atuação e, conforme leciona o Ministro Celso de Mello (STF, 2012, s.p):

tem por objetivo possibilitar a implementação de rotinas e condutas, ajustadas às diretrizes normativas fundadas nas leis, (…) – há um controle externo, mas também há um controle interno – em ordem a viabilizar de modo integrado as boas práticas de governança coorporativa e de gestão de riscos (…) a compliance tem a finalidade precípua de combater a corrupção, a lavagem de dinheiro, outras ações delituosas e, aparentemente, situações revestidas de ilicitudes, no campo penal ou administrativo.

Desta sorte, o compliance em âmbito criminal se apresenta como uma ferramenta de caráter dúplice. Em um primeiro momento é medida que vislumbra o combate à corrupção, vez que oferece certa ‘‘recompensa’’ ao empresário que se utiliza de forma efetiva de um programa de integridade.

Em uma segunda vertente, como efeito de longo prazo, apresenta-se como instrumento de reeducação social, pois que introduz no ambiente corporativo uma espécie de vacina contra o famoso “jeitinho brasileiro”, fomentando a adoção de uma postura empresarial ética e que, de acordo com Antonik (2016, p.25), é uma garantia da reputação da organização com o objetivo de assegurar perenidade, sobrevivência e resultados da empresa.

Nada obstante esses louváveis e comerciais objetivos, reside na relação do compliance com o Direito Penal e Processual Penal o objeto das principais críticas inerentes ao tema.

Com o advento da ação penal 470, vulgarmente conhecida como processo do ‘‘mensalão’’, bem como pela midiatização oriunda da pirotecnia jurídica inerente à operação ‘‘lava-jato’’, reforçou-se no inconsciente popular a já conhecida gana por medidas providencias oriundas da aplicação do Direito Penal.

A título de atender a demanda social criada, a fábrica penal inicia as atividades e por intermédio da lei anticorrupção (Lei. 12.846/2013), do decreto (8.420/2015) e da portaria 2279/2015 da Controladoria Geral da União constrói uma frágil moldura ao chamado criminal compliance.

Segundo Pereira Ribeiro e Ferreira Diniz (2015, p. 113), tais legislações atendem ainda a pressão internacional no sentido de se consolidar em nosso país um ambiente empresarial estável e moralmente controlável. Deste norte, indiscutivelmente há muitos interesses que encontram-se imbricados ao compliance, mas é necessária uma análise para além da mera ‘‘boa intenção’’ do poder público.

Descentralização dissimulada

A imposição da necessidade de instituição de programas de integridade e de processos penais internos/particulares representa verdadeira responsabilização persecutória ao particular. Escorando-se nos ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Melo (2017, p. 153), verifica-se em tal realidade uma espécie de descentralização dissimulada:

O Estado pode tanto por sí mesmo desempenhar as atividades administrativas como pode desempenhá-las por intermédio de outros sujeitos caso em que se estará perante a chamada descentralização (…) nesta hipótese o Estado transfere o exercício de atividades que lhe são pertinentes para particulares.

Neste cenário em que são utilizadas punições indiretas (ausência de atenuantes em multas exorbitantes) ao empresário que falhar em sua responsabilidade de persecução penal particular, está-se flagrantemente confrontando princípios de natureza jurídico penal, tais como a presunção de inocência, a subsidiariedade ou ainda a não autoincriminação (nemo tenetur se detegere).

Sublinha-se que aqueles que saem em defesa do compliance fundam seus discursos no caráter administrativo (não penal) das punições em processos que possuem como escopo a necessidade de efetivos programas de integridade.

Contudo, notadamente no atual cenário jurídico, especialmente pela possibilidade de compartilhamento das informações atinentes a tais processos “administrativos”, facilmente invade-se a seara penal sem o devido respeito à dogmática e segurança jurídica que se impõe.

Teorias como domínio do fato, imputação objetiva, dolo e culpa são negligenciadas e em uma busca incessante pela legitimação do novo Direito Penal. Teorias como a “cegueira deliberada”, “probabilidade do fato” e “domínio da organização” são moldadas a atender esta ambição inquisitorial de desesperada aplicação penal.

Verifica-se que o Estado, em descompasso com os princípios basilares do Direito Penal, utiliza-se daquilo que deveria ser sua ultima rattio (último recurso) como “remédio para todos os males” e eis que se apresenta o Direito Penal ‘‘reeducador’’.

Trata-se de um misto de retribuição, prevenção e ainda privatização do Direito Penal. Nesse diapasão, o criminal compliance e o programa de integridade a ele inerente representam uma espécie de PROERD à falta de ética do brasileiro, bem como um autêntico atestado de falência da sociedade.


REFERÊNCIAS 

ANTONIK, Luis Roberto. Compliance, ética, responsabilidade social e empresarial. Rio de Janeiro: Alta Book. 2016.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros. 2017.

PEREIRA RIBEIRO, Marcia Carla; FERREIRA DINIZ, Patrícia Dittrich Ferreira. Compliance e Lei Anticorrupção nas empresas. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 1 de Agosto de 2018.

Leandro Muniz Corrêa

Advogado. Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal.

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