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Criminalidade contemporânea e Direito Penal do Inimigo

Por Bruno Espiñeira Lemos

A inspiradora obra Derecho Penal contenporáneo. Sistema y desarrollo. Peligro y limites, Buenos Aires, Hammurabi, 2010, composta de textos traduzidos para o espanhol de Bernd Schünemann é um poço inesgotável de lições para aqueles que ainda acreditam que o direito penal e o direito processual penal não podem perder as balizas do Estado de Direito, mesmo diante das novas formas de criminalidade e até mesmo diante do terrorismo.

No universo abundante dos densos textos cuja preciosidade releva na proporção em que escasseiam obras com esse verniz, em território minado pela mediocridade em matéria penal, destaco a crítica feita a Jakobs e sua base filosófica da concepção do direito penal do inimigo.

Aqui de modo resumido temos que Schünemann inicia sua análise pelo contrato social como base legitimadora de um direito penal utilizado para evitar um dano social, passando pela utilidade social da pena, o princípio da culpabilidade desenvolvido na teoria retributiva da pena estatal ou teoria absoluta da pena, os fins preventivos contidos na proteção dos bens jurídicos, para concluir com uma ponte de união entre a teoria utilitarista da prevenção e o princípio da culpabilidade mediante a teoria da prevenção geral de Feuerbach, para quem se deve impedir o delito mediante a coação psicológica que se exerce sobre o delinquente potencial com a ameaça de pena.

No ponto que nos interessa, o mencionado sistema de justiça penal recebeu, segundo aquele autor alemão, novos impulsos fundamentais no século XX com o surgimento da criminalidade do “colarinho branco”.

Ou seja, na sociedade feudal, a ordem patrimonial que garantia uma distribuição do domínio desigual e rígido, fazia com que as classes dominantes não tivessem sequer necessidade de comportarem-se de modo criminoso (independentemente dos casos marginais de criminalidade aventureira, como sequestro da amada que se negava a contrair matrimônio).

Com o estabelecimento de uma equiparação jurídica na sociedade contemporânea, o meio de confrontação social passou a ser a violação da norma, incluindo também a classe alta e média-alta, primeiramente na forma da criminalidade econômica e posteriormente da criminalidade ambiental.

Desse modo se está diante de um novo paradigma que em lugar do princípio da proteção do bem jurídico entraria em consideração um controle de comportamento em estágio prévio, no qual o direito penal seria utilizado como um meio normal de regulação política. Ou seja, o princípio da culpabilidade seria substituído, para o caso dos delitos corporativos, pelo conceito do comportamento do sistema, no qual não mais interessa o comportamento de pessoas individuais e sim a direção de uma atividade coletiva.

Nesse ponto, Schünemann trata do inimigo conceituado por Jakobs como não pessoas que devem ser tratadas como animais selvagens e traça um paralelo entre as novas formas de criminalidade, inclusive, a econômica e o próprio terrorismo e as novas formas de atuação do Estado no combate a tais delitos e afirma que o “inimigo” não se combate com ameaças de penas formuladas previamente e intensas medidas processuais penais por ser inimigo, senão porque o perigo específico, que é o do crime organizado, torna necessárias ações com estas características.

Assim, não se trata de modo algum de uma classe especial de indivíduos e sim do perigo específico do crime organizado como causa de uma reação específica do Estado necessária que, por sua vez, deve naturalmente ser controlada pelo Estado de Direito. E nessa direção é que, em se tratando do crime organizado e do terrorismo preconiza Schünemann que se trata não de um direito penal do inimigo a ser aplicado aos referidos novos tipos penais e sim um problema de modernização da justiça penal como resposta a uma modernização do delito, sem ter que abandonar as conquistas do Estado de Direito penal.

Em poucas palavras, sustenta Schünemann que diante do crime organizado, incluindo o terrorismo moderno, deve ser reforçada a força instrumental da justiça penal e esse aumento de potencial de força deve se fazer suportável mediante uma paralela extensão das reservas do Estado de Direito.

Nesse ponto a crítica do pensador alemão à postura dos Estados Unidos e de Israel de anulação da posição de sujeito do afetado que seguiriam na direção absolutamente incorreta, do mesmo modo que a teoria de Jakobs, pois segundo ele a criminalidade organizada depende de uma comunicação interna elaborada, de modo que as tecnologias modernas para controlar a comunicação devem ser indefectivelmente incorporadas aos instrumentos de persecução penal, como já vem ocorrendo em numerosos Estados. Tudo isso sem perder de vista os perigos imprevisíveis para a liberdade do indivíduo.

A construção teórica assombrosa de Schünemann, e aqui digo assombrosa pela qualidade das ideias e compromisso intransigente com o Estado de Direito, preocupado com os menoscabos contra a DEFESA, pois, reconhece que o Estado passa a utilizar-se de métodos de investigação da delinquência organizada típicos dos serviços secretos, eliminando-se estruturalmente, desse modo, a forma clássica da defesa, e, por essa razão, defende o jurista alemão que se crie uma COMPENSAÇÃO sob a forma de uma PRÉ-DEFESA FIDUCIÁRIA.

Em palavras diretas, o próprio ESTADO deve criar uma compensação à defesa na forma de uma pré-defesa fiduciária e para tanto, propomos, inspirados em Schünemann, a criação de um organismo (ele denomina de instituição) financiado pelo Estado, controlada pelos colégios de advogados (e aqui fica o desejo de que a OAB volte a funcionar a contento, também, neste particular).

Os representantes do referido organismo devem ter direitos à informação, de ser ouvidos e de recorrer, exercendo, pois, de forma fiduciária os interesses dos investigados (aqui o funcionamento se daria na fase de investigação, evitando-se os abusos). Ao diretor da referida instituição dar-se-ia o nome de “encarregado da proteção da defesa”.

Fiquemos por ora, com essas reflexões, sempre lutando incansavelmente para que os novos tempos do direito processual penal se pautem menos no direito penal do inimigo e mais no Estado de Direito que afirmamos democrático (?). Afinal hoje são eles, mas amanhã poderão estar em nossos jardins…

_Colunistas-BrunoLemos

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